quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

11 - Sogra, Mart-Hame



11 - SOGRA, "MART-HAME" I
      A palavra sogra traz desconforto a muita gente. Lembra ogra, droga, logra. Não é a palavra em si. mas o que representa: sogra, a mãe vigilante, a qualquer custo,  pela felicidade do filho ou filha. A controversa personagem recebe um tratamento carinhoso dos  libaneses. A venerável figura é Mart -Hame, isto é,  tia, em tradução literal: mulher do tio. E para sogro é Hame, tio.
      Fahda é de origem nobre. Em seu lar de solteira, goza de todos os luxos. Casa-se, bastante jovem, por imposição familiar, com um viúvo, Abussâmara Neme, muitos anos mais velho que ela e muito bem estabelecido na vida. Felipe é filho do primeiro casamento e torna-se o enteado de Fahda, um enteado com quem antipatiza desde o primeiro momento. Antipatia retribuída e sincronizada. Fahda acrescenta quatro filhos ao lar: Scândar (Alexandre), Ehsad, Êssar (Alfredo) e Adib.
      Quando Abussâmara morre, ela se torna a única responsável pelo sustento do lar. Suas posses tinham desaparecido, como num truque mágico. Uma mulher bela, de olhos fascinantemente expressivos, que só conhece o conforto, de repente, precisando arrumar uma ocupação que garanta a vida a ela e à sua prole. .
      De têmpera forte e orgulhosa, não se acanha em aprender a fazer pães e passa a vendê-los, entregando-os pessoalmente, com algum dos filhos. Êssar era um dos seus habituais companheiros de trabalho.
       Com esse histórico, talvez seja natural que sinta a nora quase como uma rival.
      Assim que chega ao Brasil, Instala-se na casa de Alfredo, em Piratininga.
      A pequena cidade, com poucos habitantes, é reduto de uma poderosa colônia árabe- libanesa. 
      Logo percebe o bom andamento dos negócios de Alfredo, Assim Fahda volta à antiga vida de mulher rica e nobre: abandona qualquer trabalho doméstico, ainda mais com a chegada de Sálua..Depois que  Êssar se casa com Sálua, supervisiona a nora e as empregadas, com olhos sábios e críticos. Orienta-as. Dá-lhes ordens. Sempre em árabe, o que confunde e aturde as serviçais. Então é Sálua que age como mediadora, como intérprete, mas, no mais das vezes, como pacificadora.
.     As novas amigas de Sálua, Jamille e Sumaia, resolvem lançar um concurso: quem enrolará e recheará o mais perfeito quibe?
      Num domingo, todas as jovens senhoras da colônia árabe vão à luta. Sálua, em sua casa, fica empolgada com o evento. No domingo aprazado, prepara a massa, enrola os quibes, recheia-os, frita-os e leva-os numa assadeira à casa de Jamille. As outras amigas também estão chegando, cada uma trazendo o seu trabalho. Qual não é a surpresa de todas ao verem os quibes feitos por Sálua. Parece que tinham sido feitos em uma forma, de tão iguais, no tamanho, no formato, nas pontas. E, além dessa harmonia geométrica, os quitutes revelam-se, ao paladar, finos, macios, bem recheados, com o sabor das delícias.
      As concorrentes são também jovens, imigrantes libanesas, e todas recém-casadas. Riem, comentam, trocam confidências. Ao final do encontro, por decisão unânime, Sálua, a mais nova, é a vencedora. (Este episódio será narrado, diversas vezes, por Jamille, quando, após muitos anos, em suas visitas costumeiras  à amiga na Rua Cussi. Aproveitará a ocasião pra dizer aos filhos de Sálua que anjo têm por mãe, que soube não só conquistar a confiança da voluntariosa Fahda, como também conviver em paz com ela, missão impossível a qualquer outra mulher.)

      Quando Sálua faz o almoço, Fahda insta  para que não cozinhe muito arroz. Não pode haver sobras. Se sobrar, será desperdício!  Quando acontece de sobrar comida, Sálua fica com dor de cabeça de tanto que a sogra fala e reclama. Para que fazer tanta comida? Por que desperdiçar? Já não lhe ensinara esta lição? Por que é tão teimosa? É difícil ganhar dinheiro, mas jogá-lo é fácil. Está atirando fora o dinheiro conseguido com o suor do marido.
      Sálua, por isso, quando percebe que irá sobrar arroz, combina  com Alfredo e com o cunhado, Adib, que mora com eles, para que eles comam bastante, a fim de não haver sobras. E é o que os dois fazem, com prazer. Alfredo, por amor; Adib, por amizade e compreensão. Ambos por apetite. Fahda se admira, vendo-os comer com tanta vontade. Decerto é por serem jovens, têm trabalhado muito e, além disso, Sálua cozinha maravilhosamente. Mas não será ela quem irá elogiá-la. A nora ainda é uma criança. Tem muito a aprender.
      Durante as refeições, Sálua sente o olho vigilante de sua sogra sobre sua pessoa e sobre seus modos. Envergonha-se de colocar comida  no prato e quase que só belisca os alimentos. Sai com fome da mesa, tal é sua vergonha diante de Mart-Hame, isto é, tia, como Sálua a chama. Alfredo insiste para que ela coma mais um pouco, não comera nada! Entretanto, Sálua levanta-se da mesa, e, diante da sogra, sente aquele constrangimento, que a faz corar. Organiza a mesa, a louça,  despede-se de todos para dormir,  o estômago comprimindo-se de fome. Algumas lágrimas já afloram seus belos olhos.Ela é quem faz a comida e não pode sequer servir-se, com o olhar pesado e restritivo de Mart-Hame
      Espera Êssar subir para dormir. Não quer adormecer sem lhe dar um beijo de boa-noite.
      Ei-lo que chega. Entra, pé ante pé, acende a luz. Mas ...Que meigo! Alfredo traz nas mãos um prato com as delícias do jantar. Como ele a compreende! Como ele é bom! Juntos, em segredo e em surdina, regalam-se e riem e beijam-se com amor e paixão! Alfredo sabe cuidar dela. Ah, ela saberá sempre ser a melhor esposa, a mais dedicada e a mais compreensiva. Mas ele que não sorrisse para aquelas desavergonhadas que praticamente o devoravam com os olhos frente à loja! 
      O marido merece que ela tenha a maior paciência com a tia e sogra. Mas esta promessa que faz a si mesma irá custar-lhe muitas lágrimas e revolta. Às vezes é impossível tolerar os desaforos e a ingratidão de Fahda. Faz tudo para contentá-la, ajudá-la, diverti-la, mas esbarra sempre naquele rosto fechado e desconfiado. Não sabe mais como agir. 
      
       Mart Hame tem um olhar tão desagradável sobre sua pessoa, que congela qualquer manifestação de carinho que possa lhe dirigir. Sente-se, diante dela, uma tola, cheia de dedos e mãos e pés, desconcertada, atrapalhada, desajeitada. É incrível como a sogra a deixa fora do eixo. É como se ela se desmantelasse, se desmontasse e as peças ficassem soltas sem poder se encaixar de novo. Mas basta que Êssar a abrace, sem se importar com o olhar reprovador de Fahda, para que ela fique novamente engrenada, segura, confiante e graciosa, afinal: dona de seu nariz. 

       Bem que Fahda se sente orgulhosa ao saber que o quibe vencedor é o preparado por Sálua. Orgulha-se em ver que sua nora se sobressai, em todos os aspectos, entre as jovens da colônia. Mas ela não dará o braço a torcer. Nem sequer demonstra sua satisfação. Continua impassível e fiscalizadora. Sempre exigirá o máximo da nora. E tudo o que faz é para o bem dos recém-casados. Quando chegar a sua hora de partir deste mundo, irá tranquila, pois sabe, e sempre soube, que Alfredo está em esplêndidas mãos. Entretanto o ciúme começa a roer sua alma. Sente-se preterida pelo filho, encantado que está com a jovem esposa.
     Sem conseguir conter-se, começa a fazer intrigas, tentando chamar a atenção do filho para si.  

MART HAME II     

      Alfredo passava o dia todo na loja, Casa do Centro, conquistando fregueses e amigos. Sua simpatia já  o fizera uma das principais figuras da pequena cidade.
     Sálua, por sua vez, já ficava completamente atarefada com às lides da casa e responsabilidades com os filhos.
     Entretanto, por mais que se esforçasse, esbarrava na reprovação de Mart-Hame. As coisas iam num crescendo e Sálua começava a perceber a má vontade, quase animosidade que movia sua sogra. Eram ciúmes. Mas ciúmes maléficos que visavam  destruir a harmonia do casal.
     Logo que Alfredo chegava, puxava-o para o quarto e enchia-lhe os ouvidos de recriminações à sua jovem esposa. Eram críticas sobre como geria a casa e como era benevolente com as serviçais. Como cantava em horas indevidas. Como era calada com ela. Como vivia recebendo as visitas de amigas aduladoras, que a olhavam, a ela, sua mãe, com certa desaprovação. Com certeza, a nora falara mal dela para essas patrícias. E ia desfilando venenos: que Sálua não se importava com seu trabalho:  deixava sobrar muita comida, e  isso só o deixaria pobre. Que essa mania de cinema era prejudicial às crianças, quando as tivessem. Que patati-patatá, talvez tivesse sido melhor ele ter casado com outra moça, mais velha e mais sabida.
     Alfredo ouvia, chateava-se e, por respeito, não lhe respondia.
Salua , com sua sensível percepção, sabia que a tia queria enredá-la com o marido. Isso não podia estar acontecendo com ela. Dava o máximo de si, não parava um minuto, a casa sempre limpa, as crianças bem cuidadas e saudáveis, comida gostosa na mesa, acompanhava o marido atrás do balcão de vendas, ajudando-o, dando-lhe ânimo e incentivo. E a sogra querendo abalar seu edifício de amor? Será que ela pretendia jogar no colo do seu amado aquelas moçoilas assanhadas, que davam olhares convidativos a seu marido? Ah, nunca!
     Numa noite, aos prantos, combinou com Alfredo um plano. Ficaria escondida no quarto e ouviria o que a sogra lhe segredava. Alfredo quis demovê-la da ideia. Salua, entretanto, impôs uma aposta. Se ela estivesse enganada, nunca mais falaria no assunto. Restava a outra posição: se ela estivesse certa, ele falaria com a mãe, exigindo-lhe respeito à esposa e a ele mesmo.
      No dia seguinte, antes de Alfredo chegar, Sálua escondeu-se no quarto, debaixo da cama e aguardou. Sentia uma tristeza mesclada à revolta. Sempre fora da paz. Tratava a sogra com toda a delicadeza. Não lhe respondia as más palavras. Não a diminuía ou menosprezava frente às empregadas, nem frente às amigas, que, contudo, percebiam a situação. Mas sua dose de paciência se esgotara. Suas malévolas acusações poderiam azedar seu relacionamento com o amado. Isso não poderia permitir. Não nascera pra isso. Não viera ao Brasil para ver seu casamento ser carcomido pelos ciúmes da sogra. Ela era Sálua, que sabia onde era seu lugar. Ao lado do esposo, par a par com ele. Ninguém, nem mesmo a sogra, iria diminuí-la. Uma lágrima teimava em deslizar por suas faces. Aguentou firme a vontade de soluçar. Não! Não perderia o presente que Deus lhe mandara: o amor apaixonado de Alfredo por ela.
     Depois de alguns minutos, que lhe pareceram horas, Alfredo chegou. Nem mesmo a porta se fechara  e Fahda lhe toma o braço e o leva ao quarto. Não deu outra: patati -patatá. Os ouvidos de Alfredo tiveram que escutar o  que não queriam: críticas enciumadas à esposa.
     Debaixo da cama, com olhos cheios de lágrimas, Sálua ouvia frases amargas de um coração doente, que a faziam querer gritar. Mordia um lenço pra que seu choro não fosse ouvido.
     Seu coração era de chumbo, esperava  a reação do marido. E ela veio, imperiosa, em quase gritos. Que a mãe não fizesse nenhuma crítica à querida e amada Sálua. Era sua esposa, sua companheira, seu amor. Além de que era excelente dona de casa. Se a mãe não observasse o respeito por sua mulher, poderia sempre morar com outro filho. Que as críticas  estavam sendo feitas eram falsas. Sálua era muito admirada pelos dotes que revelava em qualquer situação . "Não vou admitir que minha própria mãe queira envenenar meu casamento, que é tudo que me faz ser feliz e querer progredir. Chega! É a última vez que a ouço fazendo intrigas sobre Sálua . Ela é minha vida. Meu amor até meu último suspiro. Se quiser morar aqui, mude de atitude,  procure ter e dar paz para nós."
     Que alívio sentiu Sálua ao ouvir essas palavras. Estava renascida em seu amor próprio, em sua dignidade.
      Fahda nem disse mais uma palavra sequer. Ficou muda: assombro pela reação do filho e receio da ameaça iminente. O melhor era calar-se e procurar ser menos rabugenta.
Saiu do quarto, rápida e com as faces em brasa.
     No quarto, Alfredo se recompunha do nervosismo que o fizera alterar a voz para a mãe  Até se esquecera de que Sálua estava sob a cama, escondida e trêmula. Ergueu a colcha da cama e a encontrou de bruços, chorando. Era muita humilhação ser alvo de tanta mesquinharia. Alfredo a ajudou a sair, consolando-a com beijos e afagos. Que nunca se preocupasse. Ele sempre acreditaria nela. Nunca deixaria que alguém pudesse interferir em suas vidas.
      Confortada de seus infortúnios com Mart-Hame, pensou que poderia sempre perdoá-la, que aqueles velhos ombros carregavam uma história de vida difícil e de decepções. O importante era que Alfredo a apoiava sem hesitações ou medos.
     Agasalhada em seus braços, Sálua sentiu que esse era seu porto seguro, sua terra prometida. Seu sonho tornado realidade.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

10 - Vida de Casados



            10- VIDA DE CASADOS
      Quando os nossos heróis – e são mesmo heróis - se casam, Sálua é ainda uma criança. Quatorze anos, recém-comemorados. O uso da palavra criança é com intuito documental,  tentando ser o mais possível fiel em relação aos fatos.

      Fahda chama Êssar e o avisa: “ Sálua é uma criança. Você terá que esperar. Meu filho, respeite-a. Tenha paciência e aguarde o momento correto.”

      Êssar faz mais do que obedecer aos conselhos maternos. Faz deles sua premissa maior e, nos primeiros tempos, resguarda Sálua de intimidades conjugais.

      Sálua é tão criança e tão ingênua que pensa que irá com as irmãs para a Argentina. Quando sabe que só ela ficará no Brasil, que sequer assistirá ao casamento das irmãs, chora, desolada. Seu desespero é tão grande, que Êssar, comovido,  promete-lhe que, futuramente, a levará para a Argentina, Ela acalma-se e, mal e mal, resigna-se. (Esta promessa Alfredo cumprirá trinta e sete anos depois. Don Alfredo, el Cumplidor!.

      (Adma e Rosete, acompanhadas por Sêmi, logo se dirigem  à Argentina, também com uma incógnita no futuro. Adma casa-se com Manuel Sago. (Dessa união,  quatro filhos vêm ao mundo: Lito, maravilhosa criatura, hoje gerente de banco,  Haydée, professora, Osvaldo, engenheiro e Guillermo, médico, humanitário,  assunto de muitas reportagens nas revistas argentinas.) 

(Foto do encontro das irmãs Sálua e Adma, 37 anos depois de separadas pelos casamentos. Da esquerda para a direita: Alfredo, Sálua, Adma, Guillermo, Sônia, Norma, Osvaldo. Foto tirada numa praça famosa pela fonte dos desejos.m Córdoba, onde os dois irmãos menores moravam. Lito era gerente de banco em General Pico, com quem os pais viviam. Haydée, professora em cidade do interior)

      Rosa casa-se com o dr. Camilo Sago, médico. Desde que chegara à Argentina, por ser jovem demais, logo se adapta ao país do tango. Estuda e segue a carreira do magistério . Estabelecem-se o marido e ela em Rio Cuarto . (Camilo e Rosa têm  três filhos: Diana Rosa, Helena e Eduardo.)




      Voltemos a Alfredo e Sálua. Depois de casados na cerimônia religiosa, passam a dormir em cama de casal, mas dormem como dois anjos. Quanto amor é capaz de  domar o desejo de um coração apaixonado! Alfredo supera  a prova, com tal compreensão que Sálua sempre lhe será grata. “Um gentleman” - narraria, laconicamente e com discrição, muitos anos mais tarde, caprichando na pronúncia da palavra inglesa.

      Quando, finalmente, Sálua está "pronta“, conforme delicada expressão de Fahda, a paixão represada irrompe arrebatadora. Para todo o sempre. No esplendor do amor, entregam-se também um ao outro, de tal maneira, que um entende o cônjuge sem palavras. Não que dispensem as conversas. Falam sobre todos os assuntos. Êssar conta-lhe o dia de trabalho, com todos os detalhes acontecidos na jornada. E Sálua nada esconde do marido. O que fizera, com quem conversara, quem estivera lá em visita, as bondades e implicâncias de Fahda. (Esse hábito de se confidenciarem com toda a sinceridade, levaram pela vida afora.) E, em meio à trivialidade do dia, olhares cúmplices, risos escancarados, um prazer indescritível em estar com o outro. Vertigens com a proximidade física, canções libanesas cantadas a duo, mãos agarradas, e Alfredo já cantando e dançando as músicas do carnaval brasileiro...
       O coração de Sálua parece  um campo, onde brotam as flores do amor. Em tão pouco tempo, Alfredo vai tomando posse de seu coração, de seus pensamentos, de sua vida.
      A ligação entre eles é absolutamente ilógica. Sálua poderia se esquivar e se rebelar. Gritar aos céus seu desespero de órfã praticamente abandonada pelos irmãos, sozinha em terra estranha,  com noivo que surgira, como num passe de mágica, em seu caminho. Entretanto, desde os primeiros olhares e palavras, sentem-se acorrentados um ao outro.
      E Alfredo poderia também agir de maneira completamente diferente: diante da ingênua e inocente Sálua, uma quase criança, decepcionar-se. Poderia escolher outra jovem, de Piratininga. Há tantas espichando o pescoço pra olhar pra ele! Mas não. Aquele sentimento inexplicável surge entre Sálua e Alfredo, de um modo avassalador. Comprazem-se na companhia um do outro. Trocam palavras, olhares, confidências. Sálua, tão sozinha, desde a perda dos pais, tem agora alguém que a ama mais que tudo na vida. E a esse amor intenso ela sucumbe, totalmente enamorada.  São sinceros, apaixonados, confiantes.

      O amor está no ar... O ciúme também, de ambas as partes. Alfredo não pode ouvir falar do primo, de São Paulo. Sálua tem birra com a ex-noiva e não suporta umas certas moçoilas que arreganham sorrisos e piscam o olho para Alfredo.



25 - O CAMAROTE DE NÚMERO ?

Cinema, paixão herdada.


          Em Piratininga, havia um divertimento adorável: o cinema. Era o Cine Omar. .
          Alfredo sempre adorou um filme, uma história bem contada. E Sálua também fazia gosto neste entretenimento. No prédio em que funcionava o cinema, havia, além das poltronas, camarotes para os mais apaixonados pela sétima arte. Eram alugados por um ano. Mais que depressa, Alfredo, no começo do ano, escolhia um para sua família. Ficava do lado direito de quem entrasse, quase ao centro. Cabiam nele até seis pessoas. Hoje em dia, sabemos que nos teatros há camarotes. É interessante conhecer esta prática antiga: camarotes no cinema. Muito bom! Devia ser a maior delícia. Ninguém na frente, visão magnífica! E lugar garantido.

          Meus pais costumavam ir ao cinema, uma ou duas vezes por semana. Estas saídas eram tortura para Fada. Não gostava que Sálua saísse. Não gostava que os dois saíssem. Ficava nervosa, emburrada, mal humorada. Como perfeita rabugice, dizia frases em árabe, que nenhum dos netos entendia, mas que davam a medida de seu descontentamento. Isso na calçada, com os dois pombinhos felizes dirigindo-se ao cinema. Cinco minutos depois, arrebanhava os netos para sua cama e..

          “kêniamaken
           abuluzamen”...

          Nós nos ajeitávamos em suas cobertas e nos preparávamos para viajar a outras paragens, a outras histórias, que mal entendíamos, porque eram narradas em ...árabe!!!  Mas, nem sabemos como, de algum modo a entendíamos porque mergulhávamos na imaginação, sob a doce voz da avó.

          Enquanto isso, o casal, de mãos dadas, na sedução da penumbra conspiradora, seguia, com olhos encantados e coração em tambor, as emoções dos personagens do filme.

          As mensagens de bondade, patriotismo, amor, lealdade, que o cinema trouxe ao jovem par,  naquele sugestivo e aconchegante camarote, ficaram gravados para sempre, em seus olhos, em seus sonhos e em suas almas.

CASA CENTRAL     

Alfredo tem sua rotina. A loja, os fregueses .

      Sálua, em pouco tempo, toma conta da casa, arruma, faz sabão em casa, cozinha, assa pães no forno à lenha. Mas Alfredo nunca a deixa varrer a casa. Para isso, e para os trabalhos pesados, contrata ajudantes, sempre. Para Alfredo, cozinhar, sim, atividade nobre. Mas Sálua lavar louça e pegar numa vassoura, jamais!
       Como Sálua é rápida, assim que se desincumbe das tarefas, corre à loja, a fim de ficar com o marido e ajudá-lo. Olham-se nos olhos, com amor, compreensão e paixão crescentes. Um passo aqui, procurando uma ferramenta para o freguês, e um beijinho, ali, atrás das prateleiras. Alfredo se derrete quando encontra seu doce e profundo olhar. 

sábado, 26 de outubro de 2013

9 - A fotografia

9 - A fotografia




      O casamento tinha sido um sucesso social. Os amigos e parentes não se cansavam de elogiar a fina estampa dos noivos. Lamentavam a ausência de fotógrafos em Piratininga. Êssar (não se esqueça  de que Êssar e Alfredo são a mesma pessoa: um é nome árabe, outro é ocidental) não ficou chorando sobre o leite derramado, pois esta não era sua característica. Depois do casamento religioso, não houve lua-de-mel, com viagem e tal. Não. Os tempos eram difíceis, mas nada que refreasse a vontade do noivo. Tinha compras para fazer em São Paulo, na Rua Florêncio de Abreu. 
      Arrumaram as malas, dobraram cuidadosamente as roupas de casamento, colocaram-nas em valises, com mais umas mudas de roupa e, com este pretexto de compras para a Casa Central, como explicação para Fahda, dirigiram-se à grande cidade, embarcando nos vagões de trem da  EF Paulista.
      Na capital ficaram hospedados no Hotel D’Oeste, o sempre escolhido de Alfredo e cujo dono era seu amigo compreensivo e protetor. Quem está sozinho na cidade grande, sabe como é bom poder contar com um amigo.
      Alfredo sentia-se tão bem ao lado de Sálua! Sentia-se o dono do mundo. Ia com ela a todos os lugares. Fazia as compras para a loja em sua companhia, explicava-lhe os critérios de compra. Depois passeavam, de mãos dadas, como duas crianças amigas. Num destes passeios, agendaram, num estúdio de fotógrafo, um horário para tirar um retrato, que eternizasse a magia e o encanto de seu casamento.
      Vestiram-se, no próprio estúdio, com capricho e alegria. Numa poltrona de braços brancos, ele sentou-se, elegante, altivo, o terno preto de risca larga de giz, o lenço branco aberto em meio leque no bolso superior do paletó de três botões, o cravo branco na lapela, os longos dedos da mão esquerda seguravam os da direita, mãos fortes, grandes e belas. Sálua, em pé, com a pequena e delicada mão apoiada no ombro de Êssar, já fazendo fulgurar não só o diamante solitário, como também a aliança de ouro, larga e pesada. No colo, uma fina corrente, cujo pendente, ficou na fotografia, escondido sob o decote em U. 
      Deixaram o retratista, com a promessa de estar pronta a foto em dez dias. Alfredo e Sálua não poderiam esperar em SP tanto tempo. Ficou acertado que voltariam a Piratininga e, nas próximas compras, no mês seguinte, Alfredo retornaria ao estúdio para apanhar as fotos. Mandara fazer três cópias. Seus filhos sempre lhes agradeceriam o gesto. Eternizaram o momento mágico da união de suas vidas.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

8 - O Casamento




    
 Os dias passavam rápidos e quentes. Era primavera, mas todo mundo sabe que primavera em outubro e novembro, no Brasil, é quente demais. É verão na pele, na carne.
      Os preparativos iam céleres. Felipe recusava-se a conversar com Alfredo. Afinal, a cunhada fora dispensada sem mais aquela. Bem que a noiva rejeitada tentara reatar o noivado. Antes da chegada de Sálua, esgueirara-se, mais de uma vez, pelo quarto de Alfredo. Ousada! Mas ele fora claro e resoluto. Sem volta. Sem perdão. Alfredo só pensava em Sálua, só queria Sálua em sua vida. A ex não se conformava. E, por isso mesmo, Felipe continuava revoltado. Não iria, nem ninguém de sua família, ao casamento.
      Sálua e as irmãs mandaram fazer seus vestidos. A costureira era uma verdadeira madame na arte da costura. E era mesmo chamada de madame: Madame  Adalmira Fontão, modista célebre das redondezas e a predileta de todos os vips da terrinha. Escolheu um vestido branco, com bordados de flor e folhas, na saia, no peito, junto ao decote singelo e nos punhos das mangas longas. Um véu preso por uma delicada guirlanda de flores de laranjeira cobria-lhe os cabelos como um chapeuzinho terminado por babados, o que lhe conferia um ar mais angelical e mais infantil. Um apanhado do tecido saía do alto, formando uma primeira capa, descendo nos lados numa faixa larga que ia até o cumprimento da saia. Outro véu, de  transparente, nascendo nas  costas, esvoaçava pelo corpo.
      Além desses vestidos, Dona Nina completou o enxoval com peças mais simples tanto para Sálua como para Alfredo.
      O terno de Alfredo, de risca de giz, e suas calças e camisas, seriam feitos por um alfaiate experiente.
      Tudo sairia muito bem. Os primos todos estavam felizes, a paz campeava entre eles. Adib, ainda solteiro, o caçula dos Nemes, animava todos com suas brincadeiras e com sua alegria. Alexandre já demonstrava que maravilhoso cunhado e amigo seria para Sálua. A figura da matriarca não era das mais amistosas, mas, mesmo assim, percebia-se que era de seu gosto esse casamento. Afinal, Sálua e irmãos eram seus sobrinhos. Ela, Fahda, era irmã de Salim, pai dos órfãos.
      Sálua não se dava conta de que, tanto mais se aproximava o casamento, tanto mais chegava também o dia da separação com as irmãs, que iriam morar na Argentina. Seu irmão, Sêmi iria ficar mais com ela, em Piratininga, mas teria que frequentemente visitar as irmãs no país vizinho.
      Marcaram as datas do casamento: 25 de dezembro, aniversário de Sálua, daquele ano de 1921, seria o casamento civil; e em 25 de janeiro de 1922 seria o religioso.
      25 de janeiro, aniversário de São Paulo. 1922, o ano da Semana de Arte Moderna. Que bom gosto! Como esquecer esta data? Como não lembrá-la? Como dissociá-la das grandes comemorações de aniversário da esplêndida metrópole? Ora, eles anteviam as coisas.
      O casamento civil foi realizado na casa de Êssar, com a presença de quase (Sad e família não foram) todos os familiares, Padre José Maria esteve também presente. A alegria era a tônica e Êssar não se cabia de felicidade.
      Sálua, discreta, sentia-se como num sonho. Era com ela que estavam acontecendo tantas coisas? Era dela este casamento, com este guapo rapaz, certamente cobiçado por metade das jovens de Piratininga? Ele estava muito lindo, num terno branco, de linho 120, seu tecido predileto, ideal para o clima quente. E ela estava resplandecente, num vestido azul, bordado com delicadas miçangas e canutilhos, que brilhavam menos que seus belos olhos. 
      Adma, Rosete e Sêmi abraçavam-na , desejavam-lhe felicidade. Alexandre e Maria sorriam e os parabenizavam. Ao lado de Êssar, bem mais alto que ela, olhando-o nos olhos, percebeu que a tão desejada felicidade poderia estar bem próxima, finalmente. Confiante, devolveu-lhe o olhar carinhoso e deixou que ele apertasse sua mão. Um calor inusitado, desconhecido, dominou-a. Um vermelho intenso cobriu suas faces. Êssar achou-a mais bela ainda. E, no encanto do momento, beijou-a na face, procurando fitar seus olhos. Inútil! Sálua, envergonhada desta ousadia do noivo, esgueirou-se entre os convidados e procurou asilo na companhia da irmã mais velha.
      Os dias sucediam-se céleres. E os preparativos para a cerimônia religiosa seguiam animados. Num piscar de olhos, estava-se no ano de 1922. E em outra piscadela, já no dia 25 de janeiro, dia da cidade de São Paulo.
      A cerimônia religiosa foi realizada na igreja da pequena cidade. Muitos curiosos acorreram à celebração. Uma grande dúvida pairava entre as moças de Piratininga: quem seria esta jovem, vinda do outro lado do mundo para roubar do convívio social o belo Alfredo? Seria tão bela assim? Seria casamento arranjado pelos parentes? Como é que conseguira fazer Alfredo romper um noivado legitimado pela família? Deveria ser ou muito bela ou muito poderosa. As perguntas sucediam-se. As hipóteses eram as mais diversas. Sálua seria filha de um sheik riquíssimo. O dote seria alto demais. E as especulações se multiplicavam.
     A curiosidade trouxera à igreja até crianças, como Carolina Sobral, na época com onze anos, e que seria, no futuro, a mãe do Osvaldo. Ela mesma narrou o casamento de Alfredo e Sálua, porque foi um marco na vida social de Piratininga. Um burburinho só agitava os quatro cantos do município. Ninguém estava disposto a perder esta celebração. Os irmãos, Alexandre e Adib, e os amigos de Alfredo, imigrantes e brasileiros, o ajudaram em tudo, principalmente nas brincadeiras. A alegria era senhora dos jovens corações.
      Êssar estava impecável: terno preto, risca de giz largo, com paletó de três botões,  um lenço branco, dobrado com as pontas abertas no bolso superior, um cravo branco na lapela, camisa de smoking, de colarinho alto para gravata branca borboleta. Rosto magro, uma leve brilhantina nos cabelos, olhos faiscantemente azuis, (quem conheceu não se esquece), um fino e cuidado bigode, porte ereto, alto, sobranceiro.
      Sálua entrara na igreja, conduzida por Sêmi. Seu coração batia mais que um tambor. Os olhos da cidade estavam sobre ela. Caminhava devagar, sabia que Êssar a esperava no altar. Os dias anteriores só serviram para comprovar o quanto Êssar a admirava. Eram delicadezas, atenções, olhares, rosas e flores vermelhas, gestos dedicados a ela. Um galanteio só. Impossível não confiar nele, em seus olhos perseguindo-a sempre, as mil gentilezas com que a brindava. E agora estava a poucos passos de unir sua vida à dele. Para sempre.
      Um sussurro de admiração ecoou na igreja, à entrada da noiva. Estava bela, encantadora.  Vestido perfeito até nos detalhes. A mão esquerda já ostentava o presente das bodas: um anel solitário de brilhante, que usou até o último dia de vida.. 
     Sálua, em poucos meses que estava no Brasil, já compreendia muito do que se falava, em vista de seu conhecimento de inglês. Mas, assim mesmo, a adaptação era difícil, não fora o carinho de Êssar. Ouvia à sua passagem a palavra linda e sabia o que significava. Mas o que lhe importava era ser feliz e fazer Êssar feliz. 
      Sentira, nestes primeiros tempos de convivência, que Fahda, sua sogra daqui a minutos, não era uma pessoa fácil de lidar. Era exigente e brava. Mas Deus e Êssar a ajudariam a ganhar a sua amizade e respeito.  O fato de ser tão jovem talvez fosse a causa da atitude vigilante de Fahda. Queria ensinar-lhe tudo, como se ela de nada soubesse na vida, como se os anos de internato só lhe tivessem dado um verniz de educação e preparo. Ah, se a sogra soubesse como era admirada na escola por tudo e em tudo que fazia. O tempo a ajudaria. Só pedia a Deus que não a fizesse sofrer mais do que já sofrera na infância.
      Para poder ser realizado o casamento, Êssar teve que lançar mão de um estratagema: aumentar, não se sabe com que tipo de documento, a idade da noiva. De quatorze anos, passou, numa penada, para dezessete.
      Sálua seguia pelo centro da igreja, ao som da Marcha Nupcial, com pensamentos desencontrados. Estes últimos meses passavam ante os olhos da memória como cenas cortadas de um filme. Tremia ao pensar na mudança radical em sua vida. Passo a passo, vencera aquela distância que a separava de Êssar. Estava agora à sua frente. Sêmi beijou-a na testa e entregou sua mão ao noivo, que a esperava, ansioso e exultante de alegria. Deram-se as mãos, trêmulos, olhando-se nos olhos e apertando os dedos entrelaçados. O véu do amor envolveu-os de tal maneira, que ficaram cegos a tudo que não fossem eles mesmos, só os dois e as palavras do padre ecoando pela igreja.
      O Padre José Maria celebrou o casamento, com emoção e sinceridade. Era seu amigo que se casava. Aquele amigo de cujas desventuras e trabalho rude fora testemunha. Aquele amigo que aprendera num átimo, movido pela determinação e pelo favor de Deus, a língua portuguesa, que ele, Padre José Maria, ensinara com dedicação e interesse.  Por isso celebrou com o maior fervor o sacramento e, na hora da bênção, invocou a presença de Jesus para santificar a união e proteger os noivos, até que a morte os separasse.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

7 - Santo Anjo do Senhor




Santo Anjo do Senhor,

Meu zeloso guardador!

      No dia seguinte, resolveram visitar uns parentes de Sálua. Todos bem postos, com roupas boas e cuidadas, tomaram um táxi e rumaram para as casa dos parentes que moravam em SP.
      Foram recebidos, em cada lar, com festas e alegria. Parentes que, como eles, deixaram o Líbano e chegaram à nova terra, onde tantos já tinham alcançado sucesso, pelo trabalho e determinação. E esses também já estavam tranquilos, já desfrutavam de algum luxo e muito bem-estar.
      Um dos primos de Sálua começou a rodeá-la, a encantar-se com sua figura feminina e com seus sedutores e misteriosos olhos castanho-claros.
      Alfredo começou a irritar-se com as seguidas perguntas que ele fazia a Sálua. E onde estudara e onde vivera, se conhecera fulano, se encontrara sicrano, se iria morar em São Paulo. Como? Iria morar em ...como é que é? Piratininga??? Que é isto? Onde fica? É cidade pequena, atrasada! Fique aqui, em São Paulo. (isto é: fique aqui na minha casa, case comigo, deixe esse noivo pra lá).
      Grrrrrr! Alfredo captou muito bem o significado das perguntas e daquele atrevido convite. Grrrrrrr O sangue fervia em suas veias.
      Serviu-se um cafezinho enquanto conversavam.
      Alfredo (Êssar) já estava vermelho de raiva. Como quê?!! Queriam roubar-lhe a noiva nas fuças? A noiva era dele, que ninguém se arriscasse a intrometer-se. Tinha que dar um jeito de sair daquela casa, tinha que tirar Sálua de perto desse gafanhoto. A empregada, em uniforme branco, serve o cafezinho fumegante. Café brasileiro, xícaras de porcelana fina. Para acalmar-se, Alfredo aceita uma xícara  e, ao levá-la à boca, os olhos azuis lançavam faíscas, uma raiva quase incontrolável, em seu semblante fechado.
      Ó Anjo da Guarda amigo, velando sempre por ele! Não é que a xícara se desprendeu da asa, que ficou entre os dedos de Alfredo? E o café??? Hã?  O que aconteceu com o café, negro, paulista, que estava transbordando na xícara? Ah, o café banhou o terno branco de linho 120  de Alfredo! Ele nem sentiu o quanto estava quente a bebida. Sentiu, sim, a mão imponderável de seu Anjo da Guarda, que lhe dava o motivo para arrancar-se dali.  Chamou os primos com a energia e a autoridade de quem é o chefe, (Ah hã !),  agarrou a mão de Sálua e puxou-a para longe daquele casarão e longe, para sempre, daquele sujeitinho mequetrefe.