domingo, 7 de dezembro de 2014

33 -- O Conservatório



 33 - O CONSERVATÓRIO


       






        Por alguns anos, o Conservatório Dramático e Musical de Bauru  funcionou na rua Gustavo Maciel, quase em frente ao portão de saída do colégio São José. Antes, em idos tempos, funcionara no prédio majestoso da Av. Rodrigues Alves. Mas este conservatório só conheci no Preliminar do Curso de Piano.
       Quando as inteligentes e laboriosas freirinhas planejaram um pensionato para as universitárias que estudavam na então FAFIL, hoje USC, o Conservatório transferiu-se com todos os seus pianos, instrumentos, biblioteca, métodos, livros, dicionários, estatuetas, professores, alunos, para o prédio do Colégio São José, no 1º andar, com entrada pela Antônio Alves, subindo a escadaria polida e brilhante.
        Havia dezenas de pianos iguais ao meu. Sim, tínhamos um piano em casa, de grande história, o primeiro a chegar a Piratininga, para os estudos  de minhas irmãs. Era grande, de porte alemão, com teclas de marfim, teclas de marfim, amareladas pelo tempo. 



(A foto mostra o piano, depois da reforma que lhe fez o Sr Guimarães: por isso as teclas são branquinhas)
    
                 Minhas irmãs mais velhas, Alice, Renée e Nilce estudaram piano por alguns anos e, depois, o abandonaram. 
É esse mesmo da foto: um orgulhoso Zinmermann, feito em Leipzig. Os afinadores de Bauru, entre eles o Sr Guimarães, não se cansavam de elogiar o som incrível que saía ( e sai)  de suas teclas.
       A princípio, meu Zinmermann foi a causa de meus suplícios. Parecia que não tinha nada a ver comigo. Olhava-o com indiferença mesclada com cansaço.

         Nos primeiros anos, estudei,  porque meus pais, seguindo a orientação educacional da época, ( leiam, leiam Mário de Andrade!) me  matricularam no curso, seguindo minha irmã, Norma. Não éramos as melhores nem as piores. Eu até que estava entre as dez piores.
        Francamente, nem abria os métodos de estudo. Não queria e pronto. Esse ano  era o 5º  da Norma e o 4º meu.
       Intempestivamente, Norma, que tocava lindamente La Plus que Lente, de Debussy, anunciou que desistira do Curso. Meus pais, um pouco contrariados, não insistiram. Ah, meu Deus, que inveja me corroía! Mas como largar o curso agora, depois da Norma? E o desgosto que isto causaria aos meus pais? Pensei, pensei e vi que a única solução, por enquanto, era continuar mais um ano. Mal sabia eu que esse ano mudaria toda minha perspectiva.
      Foi então que passei a faltar sistematicamente às aulas. Foi uma estratégia péssima:  as professoras  dos quatro primeiros anos ( o preliminar conta um ano)  não conseguiram despertar em mim nada a não ser tédio pelas aulas. A do primeiro ano foi uma lástima de horror e de displicência. Assim cheguei - nem sei como - ao quarto ano. Era Daicy Ribeiro a professora. A sistemática de faltar às aulas não surtiu o efeito desejado, que era:" Faltou? Azar!" O efeito foi aquele de o feitiço cair sobre o feiticeiro. Eu faltava? A professora ia a minha casa ( pode uma coisa dessas?). Chamava por mim ao portão, e me dava aula in loco. Terrível! E assim a coisa se repetiu umas três vezes.
     Eu continuava naquela moleza, faltando às aulas, deixando esquecidos, durante a semana, os métodos e livros do Curso. Mas a professora não dava trégua. Eu faltava? Pois minha casa não era tão próxima do Conservatório? Ela nem pestanejava. Pegava seu lápis e subia uma quadra, virava a esquina e lá estava a casa da preguiçosa. E não tinha jeito. Ela dava a aula a que eu me ausentara. Assim, na próxima aula, fiquei na dúvida. Ia ou não ia ao Conservatório? Se eu fosse, logo me livraria do suplício. E, se ficasse em casa, lá vinha a gentil e persistente criatura tocar a campainha, perguntar por mim e minha mãe me mandar para o piano. E ela, a professora, era tão doce, tão educada, quem haveria de resistir?


     Fui ao conservatório na aula seguinte. Mas não estudara nada, conforme minha cartilha particular. Toquei minha lição terrivelmente mal, pois foi leitura à primeira vista, não pegara na coisa nem por um segundo. (E até hoje sou péssima na leitura à primeira vista. Pra mim, tem que ser umas trinta vistas.) Foi um suplício, sim, para todos os ouvidos que se encontravam no Conservatório. Alguns até apresentaram comichões de alergia, tão pérfida fora a minha execução de uma peça de Bach. 
     Daicy, a professora insistente, com aquele narizinho minúsculo e arrebitado, coisa de desenhista, não se deu por achada. Resolveu mexer com meus brios; pediu-me pra ficar na sala a fim de assistir às aulas de duas colegas do mesmo ano do curso. Fiquei. Mas nem sabia o que iria acontecer. Era completamente inconsciente. 
     Entrou a primeira colega. E eu na cara dura, em pé, encostada na parede, nem aí. Abriu o livro de Bach e maravilha! Perfeitíssimo. Seguiram-se os outros métodos: Czerny, Beringer, Sonata, em geral de Beethoven, e uma peça musical. Fiquei estatelada, paralisada, bobificada.                       
     Conhecendo-me como me conheço hoje, devo ter ficado roxa de vergonha. Mas me recusei, orgulhosamente, a sair da sala, depois desta performance. Queria sorver aquele veneno até o fim. A próxima aluna também deu um show   
     Calada, humilhada, saí finalmente da sala, no final da aula.  
     Voltei pra casa, mortificada, mexida nos brios. Eu ia mostrar à professora quem era eu. E, nas semanas que se seguiram, fiz o que deveria ter feito desde o começo do curso: estudar, estudar, estudar. E aí aprendi a tocar piano e bem. E o melhor: comecei a me apaixonar por este instrumento magnífico. 
      Alguns podem achar que a didática tivesse sido cruel. Mas defendo-a. Foi justa e abriu meus olhos e meus ouvidos a bons exemplos.  Modelos são necessários para nosso própria evolução. E eu necessitava de modelos que não abandonassem o curso e, sim, que se entregassem apaixonadamente a ele.


     Às vezes, ouço que os pais não devem obrigar os filhos a estudar. Mas é falso. Ninguém sabe qual paixão pode brotar do estudo.
      Obrigada, meu pai, obrigada, minha mãe. Obrigada, Daicy, minha professora e amiga. O piano tem sido em minha vida o melhor terapeuta, o melhor psicólogo, o melhor confidente, o melhor amigo, a melhor fantasia, quase  a melhor emoção.

 
       
      

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

62 - "Você sabe o que é ter um amor, meu amigo?


62 - Você sabe o que é ter um amor, meu amigo?
         
          Era o velório de meu pai. Minha mãe inconformada, olhos pisados e em cascata de lágrimas. Olhava Alfredo no caixão e relembrava os sessenta anos juntos, num amor que extrapolou todos os sentidos: o físico, o espiritual.
          Reviu sua vida. Órfã aos sete anos. Casada aos quatorze. As duas irmãs com domicílio na Argentina. Perdido pela febre tifoide o único irmão, mais novo que ela. Eis o retrato de uma jovem libanesa, imigrante do Brasil.
          Alfredo preencheu todos os vácuos de sua vida, ao fazê-la  sua esposa. Deu-lhe o companheirismo de  irmão, a proteção de  pai, a compreensão de mãe, e o amor absoluto de um homem vibrante, eternamente apaixonado.
          No lar, a companhia sempre presente da Bíblia, no criado mudo. Uma minibíblia, escrita em árabe. Textos que ela aprendeu a ler no Colégio Americano de Saida, onde, por sete anos, ficara interna. Textos sagrados que ela relia, antes de dormir e lhe davam paz, conforto e esperança.
          Alfredo foi tudo pra ela. E ela, pra ele, foi tudo que um tal anjo da guarda  predissera, nos sonhos do jovem imigrante.
          O choro recrudesceu.
          Uma boa amiga tentou consolar.
         ~~ Calma, Dona Sálua. Ele está no céu.
         E, num rompante, por um momento esquecida de suas crenças mais profundas, a revolta rude de Sálua:
         -- Não diga bobagem! O céu dele era eu.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

21 - Nelson



21 - Nelson



                 






        Nelson foi o herói da minha infância. Bonito, inteligente, espirituoso, agradável, simpático, bem arrumado sempre, sempre com as roupas impecáveis. Um janota de fino trato, mas um janota de espírito e de cultura. Cinco anos mais velho,que eu, rodeado de amigos felizes como ele, era sempre o provocador de brincadeiras e de gargalhadas, tanto em família, como na vida social. Sabia tirar uma graça dos fatos mais comuns. Desde o atender ao telefone, até à entrega de presentes no Natal ( todos os anos seguindo o mesmo ritual). 
        Ao atender o telefone, encostava o aparelho no traseiro e ficava falando alto,: "Alô! Alô!"  e cada vez mais alto como se fosse possível ouvir daquele modo. Fora a cara engraçada que ele fazia, arregalando os olhos e cunhando na face o ar de incompreensão. Lógico, eram gargalhadas de sua plateia favorita: sua família. E, no Natal, recebia o presente das mãos de Alfredo, e, sem abri-lo, propunha troca com o Labib, porque sabia que só a cor seria diferente. 
       Nos esportes, destacava-se com prêmios, medalhas e taças, principalmente na natação e no tênis. E ainda ganhou certos prêmios no xadrez. Esses prêmios eram expostos numa cristaleira, na sala de música, junto com as taças de bridge que nosso pai conseguia em campeonatos regionais..  Seu fã clube o apelidara de Aranha e o seguia nas competições, torcendo por ele. Foi campeão de tênis do interior, campeão do torneio Capivara de xadrez. E muitas vezes campeão de natação. Nadava muito, foi vice-campeão paulista, 100 metros livre,  Enfim; um desportista.
        Com uma vida social tão intensa, ainda juntava mais um talento: o de dançar muito bem. Ele e Wilson não faltavam a nenhum baile, fosse no Tênis, no Automóvel Clube, ou em outros lugares. E, nos aperitivos dançantes, eram figuras carimbadas.
         

         Certo fim de semana, Nelson com seus 18 anos, foi com  seus amigos a um baile em Pirajuí. Na volta, houve um acidente e Nelson teve a clavícula quebrada. Depois do susto, nos dias que se seguiram, nossa casa parecia um verdadeiro clube de tanta gente que veio visitá-lo. Sálua ficou toda orgulhosa do filho: " O Tênis inteiro veio ver meu filho!" E, à noite, os irmãos e irmãs se revezavam para ficar no quarto com ele, velando-o. Ai, dengo!.
          Nelson tem voz poderosa de barítono. E canta esplendidamente. Sempre fui e continuo a ser sua fã. Do seu repertório habitual, constavam: Granada, Cucurrucucu, Paloma, Recuerdo,  Dos Almas, Besame Mucho,  História de Un Amor, Escreve-me, La Barca, El Reloj e o que estivesse em voga. A voz do Nelson atravessava os muros e as paredes da casa e quem passasse, pela rua, se detinha para ouvir até o fim. E os vizinhos se debruçavam em suas varandas para ouvir melhor.
         Quando ele começava a cantar Recuerdo, Sálua fugia dele e ele a perseguia cantando.  Ela cobria os ouvidos pra não escutar os versos:

 " Si quieres un recuerdo de mi
pidelo ahora
Yo voy partir y puede ser 
que por aqui no vuelvo nunca más." 

e Sálua fazia aquela carinha chorosa de sofrimento de separação!! Isso em repetidos domingos.
.Outra música da qual minha mãe também protagonizou uma cena cômica foi Jura-me





Jura-me

Altemar Dutra

"Todos dizem ser mentira que te quero
Porque nunca tinham me visto enamorado
Eu te juro que min'alma não entende
A razão de eu estar apaixonado
Quando estou perto de ti estou contente
Eu quisera que de nada tu lembrasses
Tenho medo que a sombra de outro afeto
Desfaça um dia esta ilusão tão cara
Jura-me que hás de ter no pensamento
A lembrança do momento
Em que eu te conheci
Olha-me com o teu olhar profundo
Que é a coisa deste mundo
Mais bonita que já vi
Beija-me com um beijo apaixonado
Como nunca fui beijado
Desde o dia em que nasci

Ama-me, com fervor e com loucura
E sentirás a amargura
Que estou sofrendo por ti "

       Na parte grifada, minha mãe estrilava: "Desaforado!" Ciúmes de mãe.

 A vocação social do Nelson o impunha entre todos e, graças a isso, foi eleito presidente de um clube, o Grêmio, muito jovem ainda.


        Nelson tem personalidade cativante: as pessoas que o conhecem, desde o primeiro momento sentem-se atraídas e subjugadas por seu magnetismo e simpatia. Tem o dom de envolver as pessoas  num clima de familiaridade e de bom humor. Por isso mesmo é difícil andar com ele pelas ruas de Bauru. Sempre é abordado por conhecidos, amigos, colegas, ex-colegas, vizinhos, ex-vizinhos. Todos querem cumprimentá-lo e trocar com ele algumas palavras. E de todos ele se recorda. Tem uma memória minuciosa, como convém a um advogado. 
         Quando Nelson entrou na ITE, no curso de Direito, ninguém ficou surpreso. Era esse seu destino e seu dom. Olhem só a foto do vestibulando.
 

                                           
                                   

        

          Nelson, estudante de Direito: um verdadeiro ator. Em dias de prova, não fazia a barba, ia com aquela cara de quem passou a noite estudando, amarrotada, pisada, olhos fundos. Que figura!!. Mas duvido que algum professor caísse no engodo. 
        Esse meu irmão era muito mimado. À mesa, nas refeições, em geral era a Norma quem lhe fazia o prato. Ia colocando, uma a uma, as colheradas de arroz, a conchada de feijão, salada, bife, legume, tudo bem disposto e ordenado. Feito isso, não faltando nada, a outra pândega , com o prato feito na mão esquerda, simulava uma balança e...
        __ Estão faltando 200 gr. E lá ia mais uma colherada de algum alimento!! 
         Todos os dias era tudo sempre igual.
         Nelson também se destacava em casa pelo comodismo. Se chegasse, tarde da noite, com fome, nem abrir a geladeira ele o fazia. Dormia com fome. Nunca fez um sanduíche, ou fritou um ovo, ou preparou um copo de leite. Hahahá! Típico machão.
        Outro fato corriqueiro era quando, ao chegar de algum evento social, ia pro quarto dormir, mas, assim que se deitava:
         -- Normaaaa, Sôniaaaa!
        As duas irmãs, adolescentes, acorriam céleres. Se o Neto as estava chamando, é porque tinha novidades.
         -- Oi, que é? 
         E ele, com a maior cara de pau:
         -- Apaguem a luz!
Casa antiga, interruptor longe da cama. E tome guerra de travesseiros, seu enganador!! Hahahá!

      E Nelson advogado? Maravilhoso. O cliente sente que está em boas mãos, e sob o olhar atento de alguém que conhece profundamente sua profissão, as leis, os usos, os enganos. 
         Minha amada cunhada Lenita sempre me dizia que, se ele quisesse, seria o melhor advogado de Bauru. Só que ele nunca teve essas vaidades, de querer ser o melhor. Mas, quando Osvaldo, eu e Karen  fomos mergulhados, graças à inépcia de um famoso advogado paulistano, num labirinto de angústia, Nelson largou todos seus compromissos pra nos acompanhar numa reunião decisiva com a bancada paulistana. Numa sala imponente e inibidora, entre todos  os advogados e desembargadores, vimos muito bem  quem sabia tudo e que apontava onde fora o erro que nos deixara naquela situação . 
         Quanto aos amores, teve muitas namoradas.  Solteiro, um conquistador, um Don Juan. Namorou moças bonitas , inteligentes e de boa formação, da sociedade bauruense. 
         A agência de carros ficava na Rua 1o. de Agosto. E, vizinha ao prédio, morava uma das moças mais belas de Bauru. Helena Franco. A proximidade entre o trabalho dele e a residência dela propiciou olhares entre os dois, num flerte cada vez mais apaixonado. Até que começaram a namorar. E com ela era pra ser assim: namoro sério. E ele se apaixonou pela linda jovem, de olhar sincero e puro, com porte de rainha. Uma beleza que não passava despercebida em nenhum lugar. 
         O namoro progredia e, a cada dia, os laços se tornavam mais fortes e significativos. Lógico, Nelson não perdia a chance de prendê-la ,e, pra isso, usava sua voz. Nada mais apropriado que uma música com o nome dela: Helena!
        
              Eu ontem cheguei em casa,Helena,
Te procurei e não encontrei
Fiquei tristonho a chorar

Passei o resto da noite a chamar
Helena, Helena vem me consolar - bis

Mesmo depois de cansado
O teu nome eu chamava baixinho
Helena dos meus encantos vem me fazer um carinho
E fiquei desesperado, cadê Helena meu bem
O dia já vem raiando e a minha Helena não vem
Por que será...?

Link: http://www.vagalume.com.br/miltinho/helena-helena.html#ixzz3Er8ydTao 
         Ou então cantava a letra romântica feita para a Polonaise de Chpin:

          "Para sempre teu
           Para sempre tu e eu..."
            Lenita - era assim que a deusa era chamada carinhosamente por todos que a conheciam -  venceu qualquer resistência ao casamento, e, na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte, Nelson e ela  uniram suas vidas pra sempre. 
         
         A vida dos dois, no começo, foi difícil, mas eles iam superando todas as dificuldades
         Alguém pode me perguntar se Nelson, depois de casado, continuou espirituoso, fazendo sempre piadinhas. Sim, minha gente. Nelson não mudou porque sua maior fã era sua esposa. Ele contava às vezes piadas bem sem graça e ela ria, deliciada. Por isso ele continuou a mesma pessoa feliz que era quando solteiro.         
        Em dois tempos, essa maravilhosa criatura, Lenita, aprendeu os segredos da culinária libanesa e agradava seu marido com um sem número de delicadezas e de atenções. Podemos dizer que, sendo moderna, Lenita tinha uma vida matrimonial às antigas. Sua vida girava em torno do marido e dos filhos. E, na vida de casada, continuou a despertar admiração pela beleza, pela educação, pela cultura, pela inteligência. E o melhor da Lenita. Quando estava brava com alguma coisa, sai de baixo, pessoal. Nisso ela e eu nos distanciávamos. Sempre fui muito palerma e nunca cheguei a brigar ou a discutir seriamente com alguém. Não sei fazer isso. Enquanto nós duas éramos farinha do mesmo saco em tudo o mais, aí nos diferenciávamos.
      
          Entre todas as cunhadas, que são pra mim verdadeiras irmãs, foi com a Lenita que sempre me identifiquei mais: somos as duas muito distraídas, muito fora do eixo, muito no mundo da lua.  Somos as duas um tanto atrapalhadas com as coisas, com as bolsas, com o enfoque sobre os acontecimentos. As duas muito vidradas em literatura. por isso chamávamos uma a outra de irmãzinha.
            Lenita e eu conversávamos muito ao telefone. Duas a três  vezes, por semana, sempre. Contávamos uma a outra o que contaríamos às nossas irmãs mais chegadas. Pra mim, ela era admirável, na beleza, na cultura, no modo de educar os filhos. Tínhamos os mesmos gostos para roupas,livros, bolsas e calçados. Era muito engraçado! Um dia, Adriana tirou minha bolsa do meu braço, achando que era a da mãe. Pois eram iguais!
         Nelson e Lenita tiveram três abençoados filhos: Adriana, Eliana e Nelson. Os três lhes dão sobejos motivos de orgulho e de felicidade.
         Nelson foi  vereador, em Bauru. Não era uma atividade que a Lenita aprovasse, mas deu-lhe todo o apoio. Anos depois, Nelson afastou-se das lides políticas e dedicou-se inteira e apaixonadamente  à sua profissão de advogado.
         
         Quando meus pais ficaram sós na casa da Cussi Jr, Nelson e Lenita, uma noite foram visitá-los. Naquele casarão, antes povoado de vozes e de risos, só estavam os dois, na sala, de mãos dadas assistindo à TV. Nelson sentiu uma grande dor no coração, por ver assim a passagem do tempo e as mudanças que esse mesmo tempo opera na vida.Com o intuito de confortá-los, ficaram ali até tarde da noite, tomando um café, como era costume da casa.
         Nelson tem um gênio muito forte. Mas Lenita sabia como lidar com isso. Viviam bem, porque o amor os amparava e os definia. À noite, juntos, frente à TV, assistiam a filmes de mãos dadas. Sempre. Como nossos pais.
        Esse meu irmão é daquele tipo antigo de machão. Portanto foi com muito orgulho que ouvi dele, por diversas vezes, uma frase impensável para esse tipo de homem:" Sônia, eu amo o Osvaldo." Pois é, Nelson. Essa frase foi um presente pra nós, mas não se esqueça de que eu o presenteei com esse cunhado.
        Com toda a azáfama de um lar com três filhos, Lenita conseguia não só educá-los, trazê-los sempre arrumados, o marido sempre elegante, como ela própria também estava sempre muito elegante, cuidada, penteada, cheia de classe a qualquer hora do dia. A ponto de um vizinho pensar que ela não pusesse as mãos na cozinha, de tão fina  que era. Aí minha cunhada lhe deu uma boa resposta!! Hahahá! Sai de baixo!
         Na comemoração do 70o. aniversário de Lenita, todos estavam felizes, esfuziantes. Eis um momento desse dia.   
     
        
                              
       
            Depois que nossos pais foram chamados por Deus, a casa da Rua Cussi Jr ficou desabitada, por alguns anos. Num dia, Nelson foi até lá para ver como estava a casa, se havia folhas de uva na parreira. Chegou e, coração descompassado, entrou pela sala, como sempre foi o costume. Foi percorrendo, um a um, seus cômodos. Com saudade gritante, foi  evocando imagens do passado.  Depois disso, foi ver a parreira no corredor, atrás do quarto de Sálua e Alfredo. Estava carregada de folhas lindas e novas.  Uma a uma foi colhendo as folhas, cortando-as com os dedos, enquanto seu pensamento divagava no passado.  Tinha levado no bolso um saquinho plástico, com a  intenção primeira. Saiu da casa, com a alma um tanto magoada, mas com uma alegria estranha de ter estado na casa paterna, em ter colhido as folhas e ter visto a parreira tão forte e viçosa. Quando chegou ao seu lar, entregou o pacotinho de folhas pra Lenita, que imediatamente, foi lavá-las. Em alguns minutos, estava de volta:
         -- Nelson, quem ajudou você a colher as folhas?
         -- Ninguém. Colhi sozinho.
         -- Olhe o que achei no fundo do saco plástico.
         E mostrou pra ele uma tesourinha, gasta, um tanto enferrujada, que ele reconheceu de imediato:
         -- É de minha mãe! Ai, meu Deus! Ela então procurou me ajudar, porque colhi uma a uma cortando com os dedos.
         Foi um acontecimento extraordinário. O Nassib também tivera uma aparição de minha mãe.(Muito depois, senti uma pontada de dor: por que minha mãe não dá um sinal pra mim? È que sou mesmo uma parede.) 
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          Não quero falar da perda da Lenita. É uma dor viva e constante para todos nós. E uma dor inconformada do marido. Nelson sempre falava pra Lenita que queria morrer antes dela. Deus assim não quis. Só digo por mim: ela está presente em meus dias, como a irmã amorosa que Nelson me deu.

         Notícias:
         Adriana: cursou magistério e Direito. É supervisora de ensino, concursada. O espírito arguto e brincalhão herdou do pai. A beleza e a responsabilidade feminina, herdou da mãe. Adriana e Joaquim têm três filhos, Paula, Laura e Pedro, que são instantaneamente amados, como os pais: 
         Eliana: cursou, como a irmã, Magistério e Direito. É coordenadora de  doutorado na ITE, professora na USP de Ribeirão Preto . Também, se não bastasse tudo isso, dá aulas em universidade de  Manaus, uma vez ao mês.. Oh là là! Patrick é seu filho  lindo, que tem olhos verdes como a mãe.
         Nelsinho: quando criança, de tão sapeca, era meu menino maluquinho. Mas quem leu o livro até o fim sabe que o menino não era maluquinho,  era feliz. Cursou Veterinária e é um talento no assunto. É muito ativo,  cheio de energia, e lembra bastante seu avô Alfredo. Sofia, menina adorável, é sua maravilhosa filhota, muito amada por todos.
         E Nelson? Enfrenta a perda da amada, continua a advogar. E sempre com aquela chusma de amigos, colegas, clientes e admiradores.
         Quando esteve fazendo um tratamento de saúde e precisou ser internado, o que não faltou foi gente querendo passar a noite ao seu lado, no hospital,  no caso de ele precisar. Era secretária, eram amigos, eram colegas, eram assistentes. Admirável! Até cliente se dispôs a passar a noite ali com ele. É o valor de sua personalidade. 

         Continua a advogar e sempre com brilho e sensatez. Mas não peçam que ele não se envolva quando o cliente for da família. Aí ele defende seu familiar com tanta paixão que a diplomacia fica em segundo plano.
         Acabei de falar com ele e lembramos suas cantorias. E, no entusiasmo e delícia da recordação, ele cantou uns bons trechos de muitas músicas. Ah, a voz ainda é portentosa e o canto continua agradável e emocionante. E cantou, ao telefone, a única versão  em português da Polonaise de Chopin. Poucos, raríssimos a conhecem.
          Acostumado a trabalhar muito e a não ficar parado, Nelson foi, com o tempo, apresentando uma palidez que não lhe era típica. Lenita levara-o aos médicos e, a partir daí, teve que se acostumar a tomar medicações e transfusões de sangue. Era Lenita quem cuidava dele, do horário dos remédios, das visitas ao médico, do agendamento dos exames. E, quando Lenita adoeceu, Nelson é quem cuidava dela, com todo o amor. Aquele machão às antigas que nunca fritara um ovo, passou a cozinhar, a  preparar saladas e ceias no afã de que ela se recuperasse, com a energia que só a alimentação pode oferecer. Um amor como poucos.
         Os anos se passaram e o tratamento para o Nelson  foi ficando mais e mais complexo. Nesse ponto, seu amigo Shubert, amigo desde a adolescência, levou-o a uma clínica fora dos padrões convencionais. Era a de um médium que trata seus pacientes através da força espiritual de seu anjo guardião. 
         A partir daí, e contra todos que se opunham à sua inclinação, Nelson continuou com o tratamento espiritual. No início, o médium, conhecido como  Doutorzinho, aconselhou seu novo paciente a não abandonar o tratamento médico instituído. Aconselhou-o também a tomar a medicação prescrita pelos médicos. Depois  de  muitas sessões ,  de muitas transfusões espirituais, Nelson foi submetido a um transplante de medula, realizada pelo Doutorzinho..     
        Nelson tem fé e a fé o salva. Seu ânimo continua o mesmo, sua energia é igual, e é imensamente grato ao Doutorzinho. Vai à feira aos domingos, leva e busca o neto , em seus compromissos, quando é chamado.   E trabalha com afinco. Deus abençoe quem tem fé ,quem a propaga e não a desmerece.
        ..     Conviver com o Nelson é conviver com o brilho de um astro. Ele eclipsa tudo ao redor.
        .Em suas noites solitárias, Nelson escreve cartas a Lenita. Cartas de amor e de saudade. E de muito reconhecimento à  esplêndida mulher com quem repartiu sua vida.




        






segunda-feira, 29 de setembro de 2014

20 - Wilson

Sinto muito, pessoal. Se você estiver com algum problema de saúde, principalmente cardiológico, não leia essa página, porque ela chora de saudade.


20 -  Wilson 




Wilson era, em muitos pontos, parecido com a Nilce: adorava cães, animais, aves. Indomável, independente, insubmisso. Enfim, um livre! Só odiava gatos, (daí o apelido (Mata-Gato), e corujas. Se via algum animalzinho, ou cão, ou passarinho mancando, pegava-o com delicadeza, sentava-se no chão, fazia-lhe uma tala na perninha ou na  asa ferida, amarrava-a com cuidado e deixava-o ir embora. Os cães o seguiam como a um deus.
      Sempre foi um libertário, revoltado contra imposições. Não aceitava ordens de ninguém, nem de pessoas, nem de modismos de sociedade. Era espiritualista, tinha poder mental. Curava minhas raríssimas dores de cabeça, com um toque e uma prece. Nossa família sempre foi católica. E o Wilson, jovem ainda, encontrou um outro caminho para Deus. Não sei se alguém o levou ao espiritismo, ou se ele descobriu essa opção sozinho, só sei que foi bom para ele e para nós. Pelo que conheço dele, achou o caminho sozinho.
      Wilson, na juventude, adorava mulheres: não importasse a cor. Loiras, mulatas, morenas, negras ou ruivas. Como Vinicius, sabia reconhecer a feminilidade delas e as encantava com seu jeito direto e simples, muito brincalhão e sorridente, além de seduzir com seus olhos verdes, expressivos e sinceros. (Esses olhos verdes não eram de traição, não! Não acreditem no fado!)
       O Ito era orgulhoso demais. Tinha temperamento forte, mandão, urgente. O que pedia tinha que ser feito na hora. O que mais o caracterizava era a sinceridade, a valentia e a coragem. Não tinha medo de nada. Nem de ninguém. Nem da doença, nem da morte.
        Wilson  era um predestinado:a ser porta voz de minorias: até  a canção predileta, que cantava sob o chuveiro, ou aos domingos, após o almoço, era Angelitos Negros. Quem conhece a letra, já vê que ele era o cara.  Solidário, justo, honesto, verdadeiro.
            Seu jeito de ser era extravagante para os olhos da época. Mas vejo agora como ele foi um precursor! Um pioneiro. Querem ver?
       1- Naquela época, ninguém saía de casa antes de casar. Pois o Wilson comprou sua casa e pra lá se mudou, bem solteiro. Um pioneiro, não falo isso?
     2- Nos anos cinquenta, ninguém da sociedade usava havaianas. Só as pessoas de classes humildes as utilizavam. Pois o Wilson viu logo o que todos sabem hoje: que não há nada que se compare ao conforto que esses chinelos oferecem. E ele andava em qualquer lugar, com as havaianas. Não me lembro de ninguém, de nossa roda, que as usasse. Talvez o Emir, um atípico, como ele. 
       3- E nestes anos doidos, quem usava camiseta hering, ostentando o físico perfeito? Só ele, Wilson, sem medo de ser feliz. Lembro-me muito bem que se consideravam cafajestes os moços que se exibiam com as camisetas hering. E eram sempre  de classes trabalhadoras braçais. Mas ele nem ligava para os nossos preconceitos. .
         Fora que se comportava mesmo como um cafajeste, dançando agarrado e se divertindo muito, namorando uma e já almejando outra. Quem quiser saber o que é um cafajeste, veja o clipe:
          https://www.youtube.com/watch?v=4GnnRiezYd8, com Thaeme e Thiago

         4- Outra coisa: Não me lembro de ninguém de nossas relações que cultuasse o corpo.  Wilson fazia musculação e seu corpo era perfeito, braços, cujos músculos fortes e desenvolvidos lhe obedeciam e subiam ou desciam. Os músculos do abdome também: para cima, para baixo. E, naquela época, ele antecipou a barriga de tanquinho. E no braço de ferro era invencível.  A gente olhava aquilo perplexa. Hoje, ele, Ito, poderia ser um esplêndido personal trainer. Ou seguir estas carreiras glamourosas de aventureiros, porque coragem era seu forte. Hoje poderia ser tanta coisa! E nos deixou cedo demais.
 
      Wilson tinha amigos os mais disparatados e diversos: pobres, ricos, sábios e loucos. Seus amigos eram de classe alta, média ou pobre. Eram brancos, pretos, ou o que fosse. Ah, ele nunca teve nenhum preconceito. Tinha alguns amigos como ele, que não se encaixavam muito bem naquele momento histórico. Eram os estranhos no ninho. Wilson e Emir, filho de um alfaiate famoso de Bauru, eram farinha do mesmo saco, vivendo e mantendo-se independentes, com trocas de objetos, que eles chamavam de rolo. Nunca compravam uma coisa, trocavam algo por ela. 
      Aquele modo de vida nos parecia terrível, até o dia em que fomos assistir a um filme, com Debbie Reynolds, se muito me engano, em que o pai da heroína nem poderia ser autuado pelo IR, porque tudo que tinha era adquirido por troca com outro objeto. A partir daí, passei a admirar mais meu irmão. Os negócios de Wilson e de Emir já tinham até servido de tema de filmes!! Jarbas também era do trio, mas escolheu um futuro mais acomodado que o dos amigos: Pedagogia. Mas quem os conheceu, sabia que os três  eram diferentes: não viam a vida pelo prisma das pessoas comuns. Enfim, estranhos no ninho. Não queriam seguir o que fosse determinado pelos mais velhos. Eram indômitos, orgulhosos, felizes e infelizes. Não chega a ser muito estranho que os três morressem mais cedo?.
      Norma e eu não conseguíamos entender o sucesso do Ito: as mais entojadas e frescas meninas ricas da cidade eram superamigas dele. Wilson passava, com seus carros velhos, pela casa delas, convidava-as pra passear e elas, para espanto geral - tão diferentes eram dele -  iam ao seu encontro correndo, e rindo de felicidade Pois era assim mesmo. Wilson conseguia ser amigo de pobres e de ricos, de gente esnobada e de gente simples. Ele os entendia a todos. E todos o entendiam: um moço original e livre, livre de imposições ou de preconceitos.
      Wilson era alegre, jovial, esportivo. Nadava, jogava tênis , jogava xadrez e, em todas essas modalidades, conquistava prêmios, taças e medalhas. No xadrez, deixou um nome brilhante.
            Nos bailes, era um pé de valsa, mas gostava mesmo é de dançar gafieira! (Ai, olha só o brilho do cafajeste. Pra nós, cafajeste era o mulherengo, de atitudes em desacordo com o código social, olhar atrevido, roupas e gestos chamativos, nada a ver com a definição de Aurélio.) Sempre havia as parceiras perfeitas pra essas danças sensuais. Era mais ou menos um escândalo, aos olhos da sociedade careta. Mas ~lógico - havia imitadores, aos montes! E haja exibição!! Hahahá! Que noites no Tênis Clube!
Uma vez, fui ao Tênis Clube, com minhas amigas, Júlia, Jussemy, Mari e  L, esta com seu irmão. Na hora de pagar a conta, o desavisado irmão de L resolveu, com garbo, saldá-la. Ah, ele não conhecia o Ito, que chegara um pouco depois  da conta ser entregue, e não percebera estes fatos. Vai daí que o Ito chama o garçom e pede a conta, ao que lhe responde o embasbacado garçom que a conta já havia sido paga. Ora! Onde já se viu querer pagar a conta pela segunda vez! Mas ele não conhecia o Ito. Meu irmão olhou ofendidíssimo para o gajo atrevido que antecipara o pagamento e propôs pagar-lhe o total, porque a obrigação era dele, era ele meu irmão. Não passou pela cabeça do Ito que o .R era irmão da L  Mas a coisa não ficou na maciota, não. O Ito logo se exaltou, e, com aquele físico famoso, já se preparava para tirar o paletó ! Já viram com quais intenções! Conseguimos pôr água fria naquela fervura , o Ito ressarciu o pagamento e fomos pra casa, Era assim o Ito. Imaginem quantas brigas ele e o Nelson não arrumaram, na infância e na juventude. 
            5- Wilson, à noite, depois das baladas de então, ia pra cozinha e preparava um molho de tomates, tão bem temperado, que o cheiro ia acordando um a um de nós. Fritava ovos e os  regava com aquele molho olímpico. O Ito era tão bom, tão sem egoísmo, que ia batendo nas portas dos quartos dos irmãos e chamando-nos com o convite de saborear o que preparara. Taí. Mais uma profissão que lhe caberia hoje: tocar uma  lanchonete, ou sei lá. 
         Três vezes Wilson foi mordido por cachorro com a doença da hidrofobia. Eram cachorros de casa, mesmo. Só que o Wilson não acreditava que pudessem estar doentes e sempre tentava dar-lhes comida e água.  As coisas, lógico, fugiam do controle e a doença o contagiava. O médico que aplicava as injeções no Wilson era muito amigo da família. E, no baile de minha formatura de faculdade, o Wilson, dançando comigo, encontrava no salão, o médico que o livrara do perigo. E o cumprimento dos dois era:
         -- Auau!
         -- Auauau!
         Hahahá!
              Mas orgulho-me de lembrar que, quando brigávamos, na juventude, durante o dia--  por razões que nem ficaram na lembrança -- à noite, já fazíamos as pazes.  E, antes de dormir, encontrava sob o travesseiro um bilhetinho pedindo desculpas. Assinado: Wilson. Incrível e indomável irmão!  Numa de suas raras viagens a São Paulo, foi pra mim que trouxe um presente: um disco de música clássica, com o lindo título em vermelho: “O Coração do Concerto”. Ele, que, assim me parecia - vejam como me enganei! - nem dava bola pro meu piano. Ah!
             Wilson, por seu temperamento fogoso, teve muitas namoradas e até amantes..
Todos nos preocupávamos muito com isso.
     .      Wilson, um dia, viu uma jovem loira, de aspecto angelical e apaixonou-se. De cara! E  para sempre. Adeus, garotas de programa, adeus, amantes! Wilson estava apaixonado perdidamente. Ficou endoidecido por ela e montou guarda na esquina de sua casa. Não sairia dali enquanto ela não lhe desse uma chance. O nome dela era N. O Ito ficou meses naquela vida de esquina só pra vê-la. Nós, em casa, começamos a chamá-lo de Esquininha, apelido dado por Nassib, o que rendia gargalhadas de todos nós e um sorriso superior do enamorado. E ele montando guarda na esquina da casa de N.. Mas eis quê!!! Sua persistência valeu o começo de um namoro, que o tornou melhor e mais, muito mais feliz. Namoraram por dois ou três anos. Ela frequentava nossa casa e todos lhe queriam muito bem. Era uma garota doce, ajuizada, ideal pro Wilson. Infelizmente, um dia houve a ruptura deste namoro, e a Beatriz de nosso Dante acabou por se casar com outro.  Quando soube que N ficara noiva, se sofreu, ninguém soube.
       Porque àquela altura, já estava encantado por uma jovem, de origem japonesa, Matil, que fora educada pela mais famosa família de professores  de Bauru. E com essa jovem não teve dúvidas em dar aquele passo, que, com a outra, tanto temera: noivou e casou. .Aquele amor que parecia eterno, do nosso Esquininha, transformou-se em eterna amizade. Estava pronto e amadurecido para um grande amor, pronto para formar uma família. Casou-se com Matil, quase em segredo. Ninguém de casa foi comunicado. Só a Renée e família sabiam do enlace. Renée, sempre com seus braços acolhedores.
      O começo de vida do casal foi muito feliz. Matil sempre uma companheira disposta e alegre. Ela dava-lhe a segurança de uma esposa calma, prendada, inteligente, delicada. Portanto, escolheu a pessoa certa para seu gênio indócil e independente. 
      Matil e Wílson tiveram três filhos. Em sua vida, como marido e pai, foi sempre dedicado. Sempre com aquele tipo de profissão: troca de coisas por outras. Isto não lhe dava muita tranquilidade financeira.
  Mas, mesmo com seus rolos, Wilson, depois de casado,  dava à família toda a segurança  de um lar provido. Nunca pediu nada a ninguém. Ele sempre se bastou.
       Wilson e Matil tiveram três filhos, perfeitos, graças a Deus: Stella, Yolande, (a Landinha), e o Júnior, que, como o pai, se destaca no jogo de xadrez.. Eles vencerão na vida  com a força de sua herança genética: garra do pai e  versatilidade da mãe.
      Depois de alguns anos de casados, quando Ito e Matil já tinham seus filhos, Wilson levou um choque, quando mexia numa antena de televisão. A partir daí, seu corpo foi enfraquecendo, seus músculos se deteriorando, até o momento terrível dos seus últimos meses de vida, em que só mexia os olhos. E com os olhos ele se comunicava. Ai! a dor de ver que o que ele fizera de melhor, a educação de seu corpo à perfeição, esboroava-se a olhos vistos. Um consolo: a lucidez ele manteve sempre.
     Uma vez, nós o levamos a Ribeirão Preto: Labib, Nassib, Humberto, Wílson e eu. O médico examinou o Wilson e começou a dar o diagnóstico terrível, como se o paciente não o estivesse entendendo. Um bruto! Saímos rápidos de lá. Humberto carregou o primo, da maca do consultório até o carro. Ah, Humberto! Para nós sempre foi um irmão. A boa vontade, a energia do primo se casavam com o carinho que tinha por nós e nós por ele!. Estava sempre pronto para nos ajudar. E sempre com alegria. Para mim, Humberto foi o mais irmão que um primo possa ser. E acho que o mesmo para todos os meus irmãos. Voltamos e o Humberto e Nassib fazendo o possível para desanuviar o clima, mas o Labib e eu acabados de tristeza , sem conseguir fingir.  Ah, e Wilson sabia tudo, entendia tudo, sofria mais por isto.
      Nesta época, eu lecionava no Morais Pacheco, de manhã e à tarde. Quando chegava a nossa casa, minha mãe nem me deixava sair do carro.
           -- Sônia, por favor, leve este jantar para seu irmão.

      Era duro ver o Wilson naquela situação. Matil estava sempre serena, forte, sem queixar-se do destino. Eu sofria por ver aquele irmão, que fora tão forte, que tivera um físico invejável, reduzido àquela fraqueza e imobilidade. Se eu sofri, como deve ter sofrido minha mãe, que sempre o protegera, por seu gênio diferente , insubmisso, indomável.! Como deve ter sofrido Matil! Wilson viu, dia a dia, seu cuidado corpo se enfraquecer. Viu as primeiras negativas de seus músculos tão treinados! Acompanhou o definhar de seu físico com uma força interior insuspeitável, inimaginável. Suportou a privação dos movimentos, a ausência da fala! Wilson se santificou em vida. Ninguém poderia imaginar, ninguém poderia sequer pensar que aquele que fora tão urgente, tão indomável, tão insubmisso, tão liberto, fosse aceitar provação tamanha! Prisão tamanha! Sem uma queixa. Só o vi chorar uma vez! Como dói até hoje essa lembrança! No mais, parecia que ele é quem nos consolava.
                Nassib, nesses tempos terríveis em que a doença ia-se apoderando do corpo do irmão, foi quase um pai. Claudicando, com a perna sempre o arrastando à dor, não se deixava vencer e quase todos os dias ia ver o irmão. E sempre levava algum prato que a Jeannete preparara para o jantar. Não havia o que ele não tentasse para ver o irmão restabelecido
             Rezávamos, líamos,fazíamos promessas. Nada surtia efeito. A doença galopando.  Até pessoal de umbanda chamamos em casa para rezar por ele. A umbandista andava sobre as brasas vermelhas e, tomada por algum espírito (ou representando) repetia frases que não nos davam nenhuma esperança.
              Não fui a melhor irmã pra ele. Talvez tenha sido a Renée, com sua tolerância, calor humano  e aceitação.Ou a Alice, com sua sabedoria e compaixão. Ou a Nilce, com suas provisões. Ou a Norma, com suas narrações divertidas Eu só inventei um alfabeto com que ele pudesse se comunicar, através de piscadelas 
             Todos o amavam, e sofriam com ele.
            Este meu irmão era pra ter nascido nestes tempos de hoje.  Personal trainer, atleta, aventureiro, especialista em pets, espiritualista, chef, enxadrista, cuidador, tanta coisa. Em nosso tempo, estava um pouco perdido. Sim, o tempo dele deveria ter sido agora. Mil caminhos de sucesso. Mil estradas de realização.
Wilson foi embora antes de completar quarenta anos. Foi a primeira perda na família. O Nassib chorava:
            -- Sônia, já não somos nove!. 
         Stella, Yolande e Júnior muito cedo, se viram órfãos de pai. Ele nunca os abandonaria, se pudesse escolher. Que a força do Wilson invada suas vidas e as aperfeiçoe e os faça progredir no sentido da felicidade e autorrealização.
      Matil, você foi heroica em suportar  aqueles dois anos de doença, e doença cruel que escolheu seu marido. Uma cruz pesada demais para ele, mas que você ajudou a carregar, tornando-a mais leve, com seu jeito calmo e forte. Tanto que até os últimos dias, Wilson assistia a jogos pela TV, torcendo caladamente por seu time do coração: Santos Futebol Clube.
       Wilson, meu querido Ito, você foi um espírito independente desde sempre, insubmisso, insubordinado, um visionário. Pra tudo você queria urgência! Tinha sempre pressa. Você talvez já vislumbrasse que seu tempo era curto para tudo que você poderia e queria fazer. Para você não existiam diferenças de cor, de raça, de nível social, de credo religioso. Espírito liberto de grilhões que acapacham a mente e a alma, lembrar você é sentir a força da juventude, o encanto e o mistério de uma personalidade que não se dobrava nem à força, nem à autoridade:  Mas que se rendeu conformado ao desígnio de Deus.
      Wílson, cem por cento sinceridade. Cem por cento valentia! Cem por cento verdade! Cem por cento coragem!
         Wilson. Cem por cento coração!