quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

11 - Sogra, Mart-Hame



11 - SOGRA, "MART-HAME" I
      A palavra sogra traz desconforto a muita gente. Lembra ogra, droga, logra. Não é a palavra em si. mas o que representa: sogra, a mãe vigilante, a qualquer custo,  pela felicidade do filho ou filha. A controversa personagem recebe um tratamento carinhoso dos  libaneses. A venerável figura é Mart -Hame, isto é,  tia, em tradução literal: mulher do tio. E para sogro é Hame, tio.
      Fahda é de origem nobre. Em seu lar de solteira, goza de todos os luxos. Casa-se, bastante jovem, por imposição familiar, com um viúvo, Abussâmara Neme, muitos anos mais velho que ela e muito bem estabelecido na vida. Felipe é filho do primeiro casamento e torna-se o enteado de Fahda, um enteado com quem antipatiza desde o primeiro momento. Antipatia retribuída e sincronizada. Fahda acrescenta quatro filhos ao lar: Scândar (Alexandre), Ehsad, Êssar (Alfredo) e Adib.
      Quando Abussâmara morre, ela se torna a única responsável pelo sustento do lar. Suas posses tinham desaparecido, como num truque mágico. Uma mulher bela, de olhos fascinantemente expressivos, que só conhece o conforto, de repente, precisando arrumar uma ocupação que garanta a vida a ela e à sua prole. .
      De têmpera forte e orgulhosa, não se acanha em aprender a fazer pães e passa a vendê-los, entregando-os pessoalmente, com algum dos filhos. Êssar era um dos seus habituais companheiros de trabalho.
       Com esse histórico, talvez seja natural que sinta a nora quase como uma rival.
      Assim que chega ao Brasil, Instala-se na casa de Alfredo, em Piratininga.
      A pequena cidade, com poucos habitantes, é reduto de uma poderosa colônia árabe- libanesa. 
      Logo percebe o bom andamento dos negócios de Alfredo, Assim Fahda volta à antiga vida de mulher rica e nobre: abandona qualquer trabalho doméstico, ainda mais com a chegada de Sálua..Depois que  Êssar se casa com Sálua, supervisiona a nora e as empregadas, com olhos sábios e críticos. Orienta-as. Dá-lhes ordens. Sempre em árabe, o que confunde e aturde as serviçais. Então é Sálua que age como mediadora, como intérprete, mas, no mais das vezes, como pacificadora.
.     As novas amigas de Sálua, Jamille e Sumaia, resolvem lançar um concurso: quem enrolará e recheará o mais perfeito quibe?
      Num domingo, todas as jovens senhoras da colônia árabe vão à luta. Sálua, em sua casa, fica empolgada com o evento. No domingo aprazado, prepara a massa, enrola os quibes, recheia-os, frita-os e leva-os numa assadeira à casa de Jamille. As outras amigas também estão chegando, cada uma trazendo o seu trabalho. Qual não é a surpresa de todas ao verem os quibes feitos por Sálua. Parece que tinham sido feitos em uma forma, de tão iguais, no tamanho, no formato, nas pontas. E, além dessa harmonia geométrica, os quitutes revelam-se, ao paladar, finos, macios, bem recheados, com o sabor das delícias.
      As concorrentes são também jovens, imigrantes libanesas, e todas recém-casadas. Riem, comentam, trocam confidências. Ao final do encontro, por decisão unânime, Sálua, a mais nova, é a vencedora. (Este episódio será narrado, diversas vezes, por Jamille, quando, após muitos anos, em suas visitas costumeiras  à amiga na Rua Cussi. Aproveitará a ocasião pra dizer aos filhos de Sálua que anjo têm por mãe, que soube não só conquistar a confiança da voluntariosa Fahda, como também conviver em paz com ela, missão impossível a qualquer outra mulher.)

      Quando Sálua faz o almoço, Fahda insta  para que não cozinhe muito arroz. Não pode haver sobras. Se sobrar, será desperdício!  Quando acontece de sobrar comida, Sálua fica com dor de cabeça de tanto que a sogra fala e reclama. Para que fazer tanta comida? Por que desperdiçar? Já não lhe ensinara esta lição? Por que é tão teimosa? É difícil ganhar dinheiro, mas jogá-lo é fácil. Está atirando fora o dinheiro conseguido com o suor do marido.
      Sálua, por isso, quando percebe que irá sobrar arroz, combina  com Alfredo e com o cunhado, Adib, que mora com eles, para que eles comam bastante, a fim de não haver sobras. E é o que os dois fazem, com prazer. Alfredo, por amor; Adib, por amizade e compreensão. Ambos por apetite. Fahda se admira, vendo-os comer com tanta vontade. Decerto é por serem jovens, têm trabalhado muito e, além disso, Sálua cozinha maravilhosamente. Mas não será ela quem irá elogiá-la. A nora ainda é uma criança. Tem muito a aprender.
      Durante as refeições, Sálua sente o olho vigilante de sua sogra sobre sua pessoa e sobre seus modos. Envergonha-se de colocar comida  no prato e quase que só belisca os alimentos. Sai com fome da mesa, tal é sua vergonha diante de Mart-Hame, isto é, tia, como Sálua a chama. Alfredo insiste para que ela coma mais um pouco, não comera nada! Entretanto, Sálua levanta-se da mesa, e, diante da sogra, sente aquele constrangimento, que a faz corar. Organiza a mesa, a louça,  despede-se de todos para dormir,  o estômago comprimindo-se de fome. Algumas lágrimas já afloram seus belos olhos.Ela é quem faz a comida e não pode sequer servir-se, com o olhar pesado e restritivo de Mart-Hame
      Espera Êssar subir para dormir. Não quer adormecer sem lhe dar um beijo de boa-noite.
      Ei-lo que chega. Entra, pé ante pé, acende a luz. Mas ...Que meigo! Alfredo traz nas mãos um prato com as delícias do jantar. Como ele a compreende! Como ele é bom! Juntos, em segredo e em surdina, regalam-se e riem e beijam-se com amor e paixão! Alfredo sabe cuidar dela. Ah, ela saberá sempre ser a melhor esposa, a mais dedicada e a mais compreensiva. Mas ele que não sorrisse para aquelas desavergonhadas que praticamente o devoravam com os olhos frente à loja! 
      O marido merece que ela tenha a maior paciência com a tia e sogra. Mas esta promessa que faz a si mesma irá custar-lhe muitas lágrimas e revolta. Às vezes é impossível tolerar os desaforos e a ingratidão de Fahda. Faz tudo para contentá-la, ajudá-la, diverti-la, mas esbarra sempre naquele rosto fechado e desconfiado. Não sabe mais como agir. 
      
       Mart Hame tem um olhar tão desagradável sobre sua pessoa, que congela qualquer manifestação de carinho que possa lhe dirigir. Sente-se, diante dela, uma tola, cheia de dedos e mãos e pés, desconcertada, atrapalhada, desajeitada. É incrível como a sogra a deixa fora do eixo. É como se ela se desmantelasse, se desmontasse e as peças ficassem soltas sem poder se encaixar de novo. Mas basta que Êssar a abrace, sem se importar com o olhar reprovador de Fahda, para que ela fique novamente engrenada, segura, confiante e graciosa, afinal: dona de seu nariz. 

       Bem que Fahda se sente orgulhosa ao saber que o quibe vencedor é o preparado por Sálua. Orgulha-se em ver que sua nora se sobressai, em todos os aspectos, entre as jovens da colônia. Mas ela não dará o braço a torcer. Nem sequer demonstra sua satisfação. Continua impassível e fiscalizadora. Sempre exigirá o máximo da nora. E tudo o que faz é para o bem dos recém-casados. Quando chegar a sua hora de partir deste mundo, irá tranquila, pois sabe, e sempre soube, que Alfredo está em esplêndidas mãos. Entretanto o ciúme começa a roer sua alma. Sente-se preterida pelo filho, encantado que está com a jovem esposa.
     Sem conseguir conter-se, começa a fazer intrigas, tentando chamar a atenção do filho para si.  

MART HAME II     

      Alfredo passava o dia todo na loja, Casa do Centro, conquistando fregueses e amigos. Sua simpatia já  o fizera uma das principais figuras da pequena cidade.
     Sálua, por sua vez, já ficava completamente atarefada com às lides da casa e responsabilidades com os filhos.
     Entretanto, por mais que se esforçasse, esbarrava na reprovação de Mart-Hame. As coisas iam num crescendo e Sálua começava a perceber a má vontade, quase animosidade que movia sua sogra. Eram ciúmes. Mas ciúmes maléficos que visavam  destruir a harmonia do casal.
     Logo que Alfredo chegava, puxava-o para o quarto e enchia-lhe os ouvidos de recriminações à sua jovem esposa. Eram críticas sobre como geria a casa e como era benevolente com as serviçais. Como cantava em horas indevidas. Como era calada com ela. Como vivia recebendo as visitas de amigas aduladoras, que a olhavam, a ela, sua mãe, com certa desaprovação. Com certeza, a nora falara mal dela para essas patrícias. E ia desfilando venenos: que Sálua não se importava com seu trabalho:  deixava sobrar muita comida, e  isso só o deixaria pobre. Que essa mania de cinema era prejudicial às crianças, quando as tivessem. Que patati-patatá, talvez tivesse sido melhor ele ter casado com outra moça, mais velha e mais sabida.
     Alfredo ouvia, chateava-se e, por respeito, não lhe respondia.
Salua , com sua sensível percepção, sabia que a tia queria enredá-la com o marido. Isso não podia estar acontecendo com ela. Dava o máximo de si, não parava um minuto, a casa sempre limpa, as crianças bem cuidadas e saudáveis, comida gostosa na mesa, acompanhava o marido atrás do balcão de vendas, ajudando-o, dando-lhe ânimo e incentivo. E a sogra querendo abalar seu edifício de amor? Será que ela pretendia jogar no colo do seu amado aquelas moçoilas assanhadas, que davam olhares convidativos a seu marido? Ah, nunca!
     Numa noite, aos prantos, combinou com Alfredo um plano. Ficaria escondida no quarto e ouviria o que a sogra lhe segredava. Alfredo quis demovê-la da ideia. Salua, entretanto, impôs uma aposta. Se ela estivesse enganada, nunca mais falaria no assunto. Restava a outra posição: se ela estivesse certa, ele falaria com a mãe, exigindo-lhe respeito à esposa e a ele mesmo.
      No dia seguinte, antes de Alfredo chegar, Sálua escondeu-se no quarto, debaixo da cama e aguardou. Sentia uma tristeza mesclada à revolta. Sempre fora da paz. Tratava a sogra com toda a delicadeza. Não lhe respondia as más palavras. Não a diminuía ou menosprezava frente às empregadas, nem frente às amigas, que, contudo, percebiam a situação. Mas sua dose de paciência se esgotara. Suas malévolas acusações poderiam azedar seu relacionamento com o amado. Isso não poderia permitir. Não nascera pra isso. Não viera ao Brasil para ver seu casamento ser carcomido pelos ciúmes da sogra. Ela era Sálua, que sabia onde era seu lugar. Ao lado do esposo, par a par com ele. Ninguém, nem mesmo a sogra, iria diminuí-la. Uma lágrima teimava em deslizar por suas faces. Aguentou firme a vontade de soluçar. Não! Não perderia o presente que Deus lhe mandara: o amor apaixonado de Alfredo por ela.
     Depois de alguns minutos, que lhe pareceram horas, Alfredo chegou. Nem mesmo a porta se fechara  e Fahda lhe toma o braço e o leva ao quarto. Não deu outra: patati -patatá. Os ouvidos de Alfredo tiveram que escutar o  que não queriam: críticas enciumadas à esposa.
     Debaixo da cama, com olhos cheios de lágrimas, Sálua ouvia frases amargas de um coração doente, que a faziam querer gritar. Mordia um lenço pra que seu choro não fosse ouvido.
     Seu coração era de chumbo, esperava  a reação do marido. E ela veio, imperiosa, em quase gritos. Que a mãe não fizesse nenhuma crítica à querida e amada Sálua. Era sua esposa, sua companheira, seu amor. Além de que era excelente dona de casa. Se a mãe não observasse o respeito por sua mulher, poderia sempre morar com outro filho. Que as críticas  estavam sendo feitas eram falsas. Sálua era muito admirada pelos dotes que revelava em qualquer situação . "Não vou admitir que minha própria mãe queira envenenar meu casamento, que é tudo que me faz ser feliz e querer progredir. Chega! É a última vez que a ouço fazendo intrigas sobre Sálua . Ela é minha vida. Meu amor até meu último suspiro. Se quiser morar aqui, mude de atitude,  procure ter e dar paz para nós."
     Que alívio sentiu Sálua ao ouvir essas palavras. Estava renascida em seu amor próprio, em sua dignidade.
      Fahda nem disse mais uma palavra sequer. Ficou muda: assombro pela reação do filho e receio da ameaça iminente. O melhor era calar-se e procurar ser menos rabugenta.
Saiu do quarto, rápida e com as faces em brasa.
     No quarto, Alfredo se recompunha do nervosismo que o fizera alterar a voz para a mãe  Até se esquecera de que Sálua estava sob a cama, escondida e trêmula. Ergueu a colcha da cama e a encontrou de bruços, chorando. Era muita humilhação ser alvo de tanta mesquinharia. Alfredo a ajudou a sair, consolando-a com beijos e afagos. Que nunca se preocupasse. Ele sempre acreditaria nela. Nunca deixaria que alguém pudesse interferir em suas vidas.
      Confortada de seus infortúnios com Mart-Hame, pensou que poderia sempre perdoá-la, que aqueles velhos ombros carregavam uma história de vida difícil e de decepções. O importante era que Alfredo a apoiava sem hesitações ou medos.
     Agasalhada em seus braços, Sálua sentiu que esse era seu porto seguro, sua terra prometida. Seu sonho tornado realidade.