33 - O CONSERVATÓRIO
Por alguns anos, o Conservatório Dramático e Musical de Bauru funcionou na rua Gustavo
Maciel, quase em frente ao portão de saída do colégio São José. Antes, em idos
tempos, funcionara no prédio majestoso da Av. Rodrigues Alves. Mas este conservatório só conheci no Preliminar do Curso de Piano.
Quando as inteligentes e laboriosas
freirinhas planejaram um pensionato para as universitárias que estudavam na
então FAFIL, hoje USC, o Conservatório transferiu-se com todos os seus pianos,
instrumentos, biblioteca, métodos, livros, dicionários, estatuetas, professores, alunos, para o prédio do
Colégio São José, no 1º andar, com entrada pela Antônio Alves, subindo a escadaria polida e
brilhante.
Havia dezenas de pianos iguais ao meu. Sim, tínhamos um piano em casa, de grande história, o primeiro a chegar a Piratininga, para os estudos de minhas irmãs. Era grande, de porte alemão, com teclas de marfim, teclas de marfim, amareladas pelo tempo. (A foto mostra o piano, depois da reforma que lhe fez o Sr Guimarães: por isso as teclas são branquinhas)
Minhas irmãs mais velhas, Alice, Renée e Nilce estudaram piano por alguns anos e, depois, o abandonaram.
É esse mesmo da foto: um orgulhoso Zinmermann, feito em Leipzig. Os afinadores de Bauru, entre eles o Sr Guimarães, não se cansavam de elogiar o som incrível que saía ( e sai) de suas teclas.
A princípio, meu Zinmermann foi a causa de meus suplícios. Parecia que não tinha nada a ver comigo. Olhava-o com indiferença mesclada com cansaço.
Nos primeiros anos, estudei, porque meus pais, seguindo a orientação educacional da época, ( leiam, leiam Mário de Andrade!) me matricularam no curso, seguindo minha irmã, Norma. Não éramos as melhores nem as piores. Eu até que estava entre as dez piores.
Intempestivamente, Norma,
que tocava lindamente La Plus
que Lente, de Debussy, anunciou que desistira do Curso. Meus pais, um pouco
contrariados, não insistiram. Ah, meu Deus, que inveja me corroía! Mas como
largar o curso agora, depois da Norma? E o desgosto que isto causaria aos meus
pais? Pensei, pensei e vi que a única solução, por enquanto, era continuar mais
um ano. Mal sabia eu que esse ano mudaria toda minha perspectiva.
Foi então que passei a faltar sistematicamente às aulas. Foi
uma estratégia péssima: as professoras dos quatro primeiros anos ( o
preliminar conta um ano) não conseguiram despertar em mim nada a não
ser tédio pelas aulas. A do primeiro ano foi uma lástima de horror e de
displicência. Assim cheguei - nem sei como - ao quarto ano. Era Daicy
Ribeiro a professora. A sistemática de faltar às aulas não surtiu o
efeito desejado, que era:" Faltou? Azar!" O efeito foi aquele de o
feitiço cair sobre o feiticeiro. Eu faltava? A professora ia a minha
casa ( pode uma coisa dessas?). Chamava por mim ao portão, e me dava
aula in loco.
Terrível! E assim a coisa se repetiu umas três vezes.
Eu continuava naquela moleza, faltando às aulas, deixando
esquecidos, durante a semana, os métodos e livros do Curso. Mas a professora
não dava trégua. Eu faltava? Pois minha casa não era tão próxima do
Conservatório? Ela nem pestanejava. Pegava seu lápis e subia uma quadra, virava
a esquina e lá estava a casa da preguiçosa. E não tinha jeito. Ela dava a aula
a que eu me ausentara. Assim, na próxima aula, fiquei na dúvida. Ia ou não ia ao Conservatório?
Se eu fosse, logo me livraria do suplício. E, se ficasse em casa, lá vinha a
gentil e persistente criatura tocar a campainha, perguntar por mim e minha mãe
me mandar para o piano. E ela, a professora, era tão doce, tão educada, quem haveria de resistir?
Fui ao conservatório na aula seguinte. Mas não estudara nada, conforme minha
cartilha particular. Toquei minha lição terrivelmente mal, pois foi leitura à
primeira vista, não pegara na coisa nem por um segundo. (E até hoje sou péssima
na leitura à primeira vista. Pra mim, tem que ser umas trinta vistas.) Foi um
suplício, sim, para todos os ouvidos que se encontravam no Conservatório.
Alguns até apresentaram comichões de alergia, tão pérfida fora a minha execução
de uma peça de Bach.
Daicy, a professora insistente, com aquele narizinho minúsculo e arrebitado, coisa de desenhista, não se deu por achada. Resolveu mexer com meus brios; pediu-me pra ficar na sala a fim de assistir às aulas de duas colegas do mesmo ano do curso. Fiquei. Mas nem sabia o que iria acontecer. Era completamente inconsciente.
Daicy, a professora insistente, com aquele narizinho minúsculo e arrebitado, coisa de desenhista, não se deu por achada. Resolveu mexer com meus brios; pediu-me pra ficar na sala a fim de assistir às aulas de duas colegas do mesmo ano do curso. Fiquei. Mas nem sabia o que iria acontecer. Era completamente inconsciente.
Entrou a primeira colega. E eu na cara dura, em pé, encostada na parede,
nem aí. Abriu o livro de Bach e maravilha! Perfeitíssimo. Seguiram-se os outros
métodos: Czerny, Beringer, Sonata, em geral de Beethoven, e uma peça musical.
Fiquei estatelada, paralisada, bobificada.
Conhecendo-me como me conheço hoje,
devo ter ficado roxa de vergonha. Mas me recusei, orgulhosamente, a sair da
sala, depois desta performance.
Queria sorver aquele veneno até o fim. A próxima aluna também deu um show
Calada, humilhada, saí finalmente da sala, no final da aula.
Voltei pra casa, mortificada, mexida nos brios. Eu ia mostrar à professora quem era eu. E, nas semanas que se seguiram, fiz o que deveria ter feito desde o começo do curso: estudar, estudar, estudar. E aí aprendi a tocar piano e bem. E o melhor: comecei a me apaixonar por este instrumento magnífico.
Alguns podem achar que a didática tivesse sido cruel. Mas defendo-a. Foi justa e abriu meus olhos e meus ouvidos a bons exemplos. Modelos são necessários para nosso própria evolução. E eu necessitava de modelos que não abandonassem o curso e, sim, que se entregassem apaixonadamente a ele.
Calada, humilhada, saí finalmente da sala, no final da aula.
Voltei pra casa, mortificada, mexida nos brios. Eu ia mostrar à professora quem era eu. E, nas semanas que se seguiram, fiz o que deveria ter feito desde o começo do curso: estudar, estudar, estudar. E aí aprendi a tocar piano e bem. E o melhor: comecei a me apaixonar por este instrumento magnífico.
Alguns podem achar que a didática tivesse sido cruel. Mas defendo-a. Foi justa e abriu meus olhos e meus ouvidos a bons exemplos. Modelos são necessários para nosso própria evolução. E eu necessitava de modelos que não abandonassem o curso e, sim, que se entregassem apaixonadamente a ele.
Às vezes, ouço que os pais não devem obrigar os filhos a
estudar. Mas é falso. Ninguém sabe qual paixão pode brotar do estudo.
Obrigada, meu pai, obrigada, minha mãe. Obrigada, Daicy, minha professora e amiga. O piano tem sido em minha vida o melhor terapeuta, o melhor psicólogo, o melhor confidente, o melhor amigo, a melhor fantasia, quase a melhor emoção.
Obrigada, meu pai, obrigada, minha mãe. Obrigada, Daicy, minha professora e amiga. O piano tem sido em minha vida o melhor terapeuta, o melhor psicólogo, o melhor confidente, o melhor amigo, a melhor fantasia, quase a melhor emoção.