sábado, 26 de outubro de 2013

9 - A fotografia

9 - A fotografia




      O casamento tinha sido um sucesso social. Os amigos e parentes não se cansavam de elogiar a fina estampa dos noivos. Lamentavam a ausência de fotógrafos em Piratininga. Êssar (não se esqueça  de que Êssar e Alfredo são a mesma pessoa: um é nome árabe, outro é ocidental) não ficou chorando sobre o leite derramado, pois esta não era sua característica. Depois do casamento religioso, não houve lua-de-mel, com viagem e tal. Não. Os tempos eram difíceis, mas nada que refreasse a vontade do noivo. Tinha compras para fazer em São Paulo, na Rua Florêncio de Abreu. 
      Arrumaram as malas, dobraram cuidadosamente as roupas de casamento, colocaram-nas em valises, com mais umas mudas de roupa e, com este pretexto de compras para a Casa Central, como explicação para Fahda, dirigiram-se à grande cidade, embarcando nos vagões de trem da  EF Paulista.
      Na capital ficaram hospedados no Hotel D’Oeste, o sempre escolhido de Alfredo e cujo dono era seu amigo compreensivo e protetor. Quem está sozinho na cidade grande, sabe como é bom poder contar com um amigo.
      Alfredo sentia-se tão bem ao lado de Sálua! Sentia-se o dono do mundo. Ia com ela a todos os lugares. Fazia as compras para a loja em sua companhia, explicava-lhe os critérios de compra. Depois passeavam, de mãos dadas, como duas crianças amigas. Num destes passeios, agendaram, num estúdio de fotógrafo, um horário para tirar um retrato, que eternizasse a magia e o encanto de seu casamento.
      Vestiram-se, no próprio estúdio, com capricho e alegria. Numa poltrona de braços brancos, ele sentou-se, elegante, altivo, o terno preto de risca larga de giz, o lenço branco aberto em meio leque no bolso superior do paletó de três botões, o cravo branco na lapela, os longos dedos da mão esquerda seguravam os da direita, mãos fortes, grandes e belas. Sálua, em pé, com a pequena e delicada mão apoiada no ombro de Êssar, já fazendo fulgurar não só o diamante solitário, como também a aliança de ouro, larga e pesada. No colo, uma fina corrente, cujo pendente, ficou na fotografia, escondido sob o decote em U. 
      Deixaram o retratista, com a promessa de estar pronta a foto em dez dias. Alfredo e Sálua não poderiam esperar em SP tanto tempo. Ficou acertado que voltariam a Piratininga e, nas próximas compras, no mês seguinte, Alfredo retornaria ao estúdio para apanhar as fotos. Mandara fazer três cópias. Seus filhos sempre lhes agradeceriam o gesto. Eternizaram o momento mágico da união de suas vidas.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

8 - O Casamento




    
 Os dias passavam rápidos e quentes. Era primavera, mas todo mundo sabe que primavera em outubro e novembro, no Brasil, é quente demais. É verão na pele, na carne.
      Os preparativos iam céleres. Felipe recusava-se a conversar com Alfredo. Afinal, a cunhada fora dispensada sem mais aquela. Bem que a noiva rejeitada tentara reatar o noivado. Antes da chegada de Sálua, esgueirara-se, mais de uma vez, pelo quarto de Alfredo. Ousada! Mas ele fora claro e resoluto. Sem volta. Sem perdão. Alfredo só pensava em Sálua, só queria Sálua em sua vida. A ex não se conformava. E, por isso mesmo, Felipe continuava revoltado. Não iria, nem ninguém de sua família, ao casamento.
      Sálua e as irmãs mandaram fazer seus vestidos. A costureira era uma verdadeira madame na arte da costura. E era mesmo chamada de madame: Madame  Adalmira Fontão, modista célebre das redondezas e a predileta de todos os vips da terrinha. Escolheu um vestido branco, com bordados de flor e folhas, na saia, no peito, junto ao decote singelo e nos punhos das mangas longas. Um véu preso por uma delicada guirlanda de flores de laranjeira cobria-lhe os cabelos como um chapeuzinho terminado por babados, o que lhe conferia um ar mais angelical e mais infantil. Um apanhado do tecido saía do alto, formando uma primeira capa, descendo nos lados numa faixa larga que ia até o cumprimento da saia. Outro véu, de  transparente, nascendo nas  costas, esvoaçava pelo corpo.
      Além desses vestidos, Dona Nina completou o enxoval com peças mais simples tanto para Sálua como para Alfredo.
      O terno de Alfredo, de risca de giz, e suas calças e camisas, seriam feitos por um alfaiate experiente.
      Tudo sairia muito bem. Os primos todos estavam felizes, a paz campeava entre eles. Adib, ainda solteiro, o caçula dos Nemes, animava todos com suas brincadeiras e com sua alegria. Alexandre já demonstrava que maravilhoso cunhado e amigo seria para Sálua. A figura da matriarca não era das mais amistosas, mas, mesmo assim, percebia-se que era de seu gosto esse casamento. Afinal, Sálua e irmãos eram seus sobrinhos. Ela, Fahda, era irmã de Salim, pai dos órfãos.
      Sálua não se dava conta de que, tanto mais se aproximava o casamento, tanto mais chegava também o dia da separação com as irmãs, que iriam morar na Argentina. Seu irmão, Sêmi iria ficar mais com ela, em Piratininga, mas teria que frequentemente visitar as irmãs no país vizinho.
      Marcaram as datas do casamento: 25 de dezembro, aniversário de Sálua, daquele ano de 1921, seria o casamento civil; e em 25 de janeiro de 1922 seria o religioso.
      25 de janeiro, aniversário de São Paulo. 1922, o ano da Semana de Arte Moderna. Que bom gosto! Como esquecer esta data? Como não lembrá-la? Como dissociá-la das grandes comemorações de aniversário da esplêndida metrópole? Ora, eles anteviam as coisas.
      O casamento civil foi realizado na casa de Êssar, com a presença de quase (Sad e família não foram) todos os familiares, Padre José Maria esteve também presente. A alegria era a tônica e Êssar não se cabia de felicidade.
      Sálua, discreta, sentia-se como num sonho. Era com ela que estavam acontecendo tantas coisas? Era dela este casamento, com este guapo rapaz, certamente cobiçado por metade das jovens de Piratininga? Ele estava muito lindo, num terno branco, de linho 120, seu tecido predileto, ideal para o clima quente. E ela estava resplandecente, num vestido azul, bordado com delicadas miçangas e canutilhos, que brilhavam menos que seus belos olhos. 
      Adma, Rosete e Sêmi abraçavam-na , desejavam-lhe felicidade. Alexandre e Maria sorriam e os parabenizavam. Ao lado de Êssar, bem mais alto que ela, olhando-o nos olhos, percebeu que a tão desejada felicidade poderia estar bem próxima, finalmente. Confiante, devolveu-lhe o olhar carinhoso e deixou que ele apertasse sua mão. Um calor inusitado, desconhecido, dominou-a. Um vermelho intenso cobriu suas faces. Êssar achou-a mais bela ainda. E, no encanto do momento, beijou-a na face, procurando fitar seus olhos. Inútil! Sálua, envergonhada desta ousadia do noivo, esgueirou-se entre os convidados e procurou asilo na companhia da irmã mais velha.
      Os dias sucediam-se céleres. E os preparativos para a cerimônia religiosa seguiam animados. Num piscar de olhos, estava-se no ano de 1922. E em outra piscadela, já no dia 25 de janeiro, dia da cidade de São Paulo.
      A cerimônia religiosa foi realizada na igreja da pequena cidade. Muitos curiosos acorreram à celebração. Uma grande dúvida pairava entre as moças de Piratininga: quem seria esta jovem, vinda do outro lado do mundo para roubar do convívio social o belo Alfredo? Seria tão bela assim? Seria casamento arranjado pelos parentes? Como é que conseguira fazer Alfredo romper um noivado legitimado pela família? Deveria ser ou muito bela ou muito poderosa. As perguntas sucediam-se. As hipóteses eram as mais diversas. Sálua seria filha de um sheik riquíssimo. O dote seria alto demais. E as especulações se multiplicavam.
     A curiosidade trouxera à igreja até crianças, como Carolina Sobral, na época com onze anos, e que seria, no futuro, a mãe do Osvaldo. Ela mesma narrou o casamento de Alfredo e Sálua, porque foi um marco na vida social de Piratininga. Um burburinho só agitava os quatro cantos do município. Ninguém estava disposto a perder esta celebração. Os irmãos, Alexandre e Adib, e os amigos de Alfredo, imigrantes e brasileiros, o ajudaram em tudo, principalmente nas brincadeiras. A alegria era senhora dos jovens corações.
      Êssar estava impecável: terno preto, risca de giz largo, com paletó de três botões,  um lenço branco, dobrado com as pontas abertas no bolso superior, um cravo branco na lapela, camisa de smoking, de colarinho alto para gravata branca borboleta. Rosto magro, uma leve brilhantina nos cabelos, olhos faiscantemente azuis, (quem conheceu não se esquece), um fino e cuidado bigode, porte ereto, alto, sobranceiro.
      Sálua entrara na igreja, conduzida por Sêmi. Seu coração batia mais que um tambor. Os olhos da cidade estavam sobre ela. Caminhava devagar, sabia que Êssar a esperava no altar. Os dias anteriores só serviram para comprovar o quanto Êssar a admirava. Eram delicadezas, atenções, olhares, rosas e flores vermelhas, gestos dedicados a ela. Um galanteio só. Impossível não confiar nele, em seus olhos perseguindo-a sempre, as mil gentilezas com que a brindava. E agora estava a poucos passos de unir sua vida à dele. Para sempre.
      Um sussurro de admiração ecoou na igreja, à entrada da noiva. Estava bela, encantadora.  Vestido perfeito até nos detalhes. A mão esquerda já ostentava o presente das bodas: um anel solitário de brilhante, que usou até o último dia de vida.. 
     Sálua, em poucos meses que estava no Brasil, já compreendia muito do que se falava, em vista de seu conhecimento de inglês. Mas, assim mesmo, a adaptação era difícil, não fora o carinho de Êssar. Ouvia à sua passagem a palavra linda e sabia o que significava. Mas o que lhe importava era ser feliz e fazer Êssar feliz. 
      Sentira, nestes primeiros tempos de convivência, que Fahda, sua sogra daqui a minutos, não era uma pessoa fácil de lidar. Era exigente e brava. Mas Deus e Êssar a ajudariam a ganhar a sua amizade e respeito.  O fato de ser tão jovem talvez fosse a causa da atitude vigilante de Fahda. Queria ensinar-lhe tudo, como se ela de nada soubesse na vida, como se os anos de internato só lhe tivessem dado um verniz de educação e preparo. Ah, se a sogra soubesse como era admirada na escola por tudo e em tudo que fazia. O tempo a ajudaria. Só pedia a Deus que não a fizesse sofrer mais do que já sofrera na infância.
      Para poder ser realizado o casamento, Êssar teve que lançar mão de um estratagema: aumentar, não se sabe com que tipo de documento, a idade da noiva. De quatorze anos, passou, numa penada, para dezessete.
      Sálua seguia pelo centro da igreja, ao som da Marcha Nupcial, com pensamentos desencontrados. Estes últimos meses passavam ante os olhos da memória como cenas cortadas de um filme. Tremia ao pensar na mudança radical em sua vida. Passo a passo, vencera aquela distância que a separava de Êssar. Estava agora à sua frente. Sêmi beijou-a na testa e entregou sua mão ao noivo, que a esperava, ansioso e exultante de alegria. Deram-se as mãos, trêmulos, olhando-se nos olhos e apertando os dedos entrelaçados. O véu do amor envolveu-os de tal maneira, que ficaram cegos a tudo que não fossem eles mesmos, só os dois e as palavras do padre ecoando pela igreja.
      O Padre José Maria celebrou o casamento, com emoção e sinceridade. Era seu amigo que se casava. Aquele amigo de cujas desventuras e trabalho rude fora testemunha. Aquele amigo que aprendera num átimo, movido pela determinação e pelo favor de Deus, a língua portuguesa, que ele, Padre José Maria, ensinara com dedicação e interesse.  Por isso celebrou com o maior fervor o sacramento e, na hora da bênção, invocou a presença de Jesus para santificar a união e proteger os noivos, até que a morte os separasse.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

7 - Santo Anjo do Senhor




Santo Anjo do Senhor,

Meu zeloso guardador!

      No dia seguinte, resolveram visitar uns parentes de Sálua. Todos bem postos, com roupas boas e cuidadas, tomaram um táxi e rumaram para as casa dos parentes que moravam em SP.
      Foram recebidos, em cada lar, com festas e alegria. Parentes que, como eles, deixaram o Líbano e chegaram à nova terra, onde tantos já tinham alcançado sucesso, pelo trabalho e determinação. E esses também já estavam tranquilos, já desfrutavam de algum luxo e muito bem-estar.
      Um dos primos de Sálua começou a rodeá-la, a encantar-se com sua figura feminina e com seus sedutores e misteriosos olhos castanho-claros.
      Alfredo começou a irritar-se com as seguidas perguntas que ele fazia a Sálua. E onde estudara e onde vivera, se conhecera fulano, se encontrara sicrano, se iria morar em São Paulo. Como? Iria morar em ...como é que é? Piratininga??? Que é isto? Onde fica? É cidade pequena, atrasada! Fique aqui, em São Paulo. (isto é: fique aqui na minha casa, case comigo, deixe esse noivo pra lá).
      Grrrrrr! Alfredo captou muito bem o significado das perguntas e daquele atrevido convite. Grrrrrrr O sangue fervia em suas veias.
      Serviu-se um cafezinho enquanto conversavam.
      Alfredo (Êssar) já estava vermelho de raiva. Como quê?!! Queriam roubar-lhe a noiva nas fuças? A noiva era dele, que ninguém se arriscasse a intrometer-se. Tinha que dar um jeito de sair daquela casa, tinha que tirar Sálua de perto desse gafanhoto. A empregada, em uniforme branco, serve o cafezinho fumegante. Café brasileiro, xícaras de porcelana fina. Para acalmar-se, Alfredo aceita uma xícara  e, ao levá-la à boca, os olhos azuis lançavam faíscas, uma raiva quase incontrolável, em seu semblante fechado.
      Ó Anjo da Guarda amigo, velando sempre por ele! Não é que a xícara se desprendeu da asa, que ficou entre os dedos de Alfredo? E o café??? Hã?  O que aconteceu com o café, negro, paulista, que estava transbordando na xícara? Ah, o café banhou o terno branco de linho 120  de Alfredo! Ele nem sentiu o quanto estava quente a bebida. Sentiu, sim, a mão imponderável de seu Anjo da Guarda, que lhe dava o motivo para arrancar-se dali.  Chamou os primos com a energia e a autoridade de quem é o chefe, (Ah hã !),  agarrou a mão de Sálua e puxou-a para longe daquele casarão e longe, para sempre, daquele sujeitinho mequetrefe.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

6 - Barca bela

BARCA BELA


      Finalmente chegara o dia em que Sálua desembarcaria em Santos.
      Alfredo foi para lá, com a alma em tumulto de felicidade. Sua mãe, Fahda, o acompanhou, bem como seu irmão, o bondoso e compreensivo Alexandre. A hora estava próxima. Alfredo não resistia à vontade de encontrar-se com Sálua.  O problema era que o navio atracava longe e isso atrasaria o momento de vê-la. A ansiedade e o entusiasmo que o dominavam o fizeram alugar uma barca para ir ao encontro dela. E quem iria com ele? Nada menos que Fahda, sua mãe e o próprio Alexandre.
      Subiram ao barco e lá foram ao encontro das ondas do mar da felicidade. A pequena embarcação  parou ao lado do navio. E Alfredo, com acenos e gritos de alegria, chamava por seus primos, mas quem ele queria ver era... Sálua. Apareceu Adma na amurada do navio, acenando festiva e naturalmente aliviada, por encontrá-lo à espera. Depois chegou Sêmi, acenando e gritando palavras de felicidade e de carinho. Logo depois, apareceu Rosete. Mais acenos e risos. Só Sálua não aparecia. Onde estaria Sálua? O que fora feito dela? Por que não aparecia com seus irmãos? Alfredo começou a preocupar-se.           
      Sálua estava escondida, com o rosto avermelhado de vergonha, pedindo aos céus, a Deus, a Alá que um buraco se abrisse sob seus pés e a ocultasse de Alfredo, a quem já era prometida, fato que lhe causava profundo constrangimento. Era ainda uma menina, treze anos. Não sabia lidar com um noivado com esse primo, que ressurgira em sua vida. Lembrava-se dele, sim, que a carregava, nos ombros, brincando e correndo pelos campos de Marjeyoun. Mas agora já não era criança. Os anos de internato e a orfandade precoce a transformaram numa garota muito responsável e muito discreta. Cansou de pedir a Deus para que a terra se abrisse a seus pés e a engolisse, mas Ele não lhe atendeu as súplicas.
      Foi num misto de preocupação e de vergonha, que finalmente foi à amurada, cedendo aos pedidos de todos que assistiam à cena. Ruborizada, apoiou suas mãos na beirada, e olhou para baixo. Havia um barco bem próximo ao navio, com um jovem, alto, em pé, de terno branco. Com gestos largos e espalhafatosos, lhe acenava e lhe dirigia palavras de boas-vindas. Ahlaosahla! Como não sorrir, vendo aquela alegria, aquele contentamento, aquele entusiasmo, aqueles acenos exagerados, palavras loucas de amor chegando estropiadas aos seus ouvidos? Ruhi, albi, habib, iayune. Impossível não se render àqueles momentos de pura alegria e encantamento. Sorriu, divertida.
      Passados os momentos de verdadeiro desespero, de nervosismo e de aflição, quando cedeu finalmente aos pedidos de aparecer no tombadilho, não conseguia deixar de sorrir ao ver a figura esfuziante de Alfredo, com o paletó branco esvoaçando com o vento, gesticulando, rindo, gritando palavras de boas vindas.           
      Alfredo nem percebia que, em sua ansiedade por ver Sálua, quase levava o barco ao naufrágio. Fahda gritava para ele sentar-se, o barco estava prestes a virar. Realmente, a embarcação, com os movimentos agitados de Alfredo, inclinava-se perigosamente, ora para um lado, ora para outro. Fahda se desesperava. Mas o coração de Sálua  acalmou. Era órfã. Um costume antigo de casamento arranjado fora a saída, talvez a tábua de salvação para as três irmãs órfãs. Sálua fora pedida em casamento por Alfredo, seu primo, que, lá no Líbano, muitas vezes a carregara nos ombros. Era onze anos mais velho que ela. Como foi que Alfredo se lembrara dela? E para casar-se! Adma e Rosete estavam prometidas a seus primos Sago, que moravam na Argentina. Tudo estava arranjado, combinado, decidido.
      Sálua se encontrava com treze anos. Passara sua infância e começo da adolescência na escola americana, na cidade de Saida (Sidon) onde ficara até há pouco, quando os planos da família repentinamente foram mudados. Nestes anos todos, não só aprendera o idioma inglês, como aprendera a ser forte e a superar as agruras que a vida lhe oferecera tão cedo. Era naturalmente sábia e de uma inteligência invulgar. Mesmo com o coração ainda sangrando pela ausência dos pais e dos irmãos, soube aproveitar os ensinamentos que lhe eram oferecidos e tornar-se uma das alunas mais queridas e admiradas de sua geração.
      Nos últimos anos de internato, seu coração já sonhava com um amor. Um amor que a libertasse da amargura e da tristeza de ter perdido tão cedo os pais amados e dedicados. Olhava-se no pequeno espelho da escola e via sua imagem: grandes, expressivos e belíssimos olhos castanho-claros, boca pequena, bem desenhada com lábios perfeitos: nem grossos, nem finos demais. Uma pele fina, limpa, acetinada, clara. Dentes perfeitos, pequenos e alinhados. Estatura pequena, um metro e meio, corpo desabrochando. Um sorriso entre acanhado e franco, revelando a brancura de seus dentes. Cabelos castanhos, curtos, como se usava na época, levemente anelados, que brilhavam. Feições nobres, num rosto inesquecível de maçãs bem desenhadas.
      De repente, o pedido de casamento. Ela nem se lembrava de como era Êssar (Alfredo). Vagamente, recordava-se de um primo que gostava de brincar com ela e que era muito divertido. Seria ele? O destino não a favorecera muito. Primeiramente a orfandade e agora este casamento com alguém que ela nem sabia como era ou como agia. E se fosse casmurrão? E se fosse bravo e estúpido? Viera de um lar onde a educação imperava.  Ah, seu futuro era uma incógnita. Mas numa coisa podia confiar: Alfredo era seu primo e a respeitaria. E ela aceitaria seu destino e seria uma esposa tão perfeita quanto possível.
      Olhando a bela estampa de Êssar, pressentiu que era uma garota de sorte, mesmo tendo a desdita de ser órfã. Que homem interessante se tornara! Que alegria contagiante! Os olhos dele, cuja cor, a distância, seria impossível  distinguir, faiscavam, em busca dos seus. As palavras que gritava,“seja bem vinda”,“ahlaosahla” chegavam aos seus ouvidos, truncadas, mas ao seu coração íntegras e completas. E as nuvens negras, que a rodeavam há momentos atrás, afastaram-se dando lugar a um sol brilhante, tropical, caloroso, benfazejo.
      O encontro entre eles foi discreto, da parte de Sálua, e entusiasmado e vibrante por parte de Alfredo. Sentindo certa distância entre eles, Alfredo sentiu que precisava envolvê-la, precisava fazer que ela o admirasse. E, depois, conquistaria seu amor.
      Saindo de Santos, foram para São Paulo, onde ficaram num hotel, possivelmente o Hotel d’Oeste, no centro.
      No dia seguinte, depois de descansar da longa viagem, Alfredo convidou Sálua para um passeio de táxi. Logicamente bem acompanhados por Adma, Rosete e Sêmi. Sálua sentou-se ao lado de Alfredo. E lá foram eles pelas ruas já clássicas de São Paulo. Rua 15, a rua dos bancos, Rua Direita, Rua São Bento, Rua 25 de Março, ( a rua dos primos ), Av. São João, e, por onde passavam, Alfredo ia explicando as características da cidade,  ele que conhecia tão bem o centro, onde fazia compras para sua loja, principalmente, a Rua Florêncio de Abreu.  E a cada edifício alto e estonteante, para quem nunca saíra das cidades Judeith Marjeion e Saida (Sidon, cidade grande, mas nada que se comparasse à grandiosidade da que estava conhecendo), o coração de Sálua se maravilhava. Que terra próspera! E Alfredo afirmava, provocando Sálua, apontando ora um edifício, ora uma rua: “É tudo meu!!!” Sálua sorria e reconhecia que mesmo não sendo o dono de São Paulo, Alfredo, Êssar, era poderoso e envolvente.
      Um lugarzinho no coração de Sálua Alfredo sentiu que conquistara.
      Entretanto tudo que construíra durante os passeios por São Paulo parecia desabar quando foram visitar os parentes de sua noiva: Hamam, Gebara, Razuk e Samara.