Os dias passavam rápidos e quentes. Era primavera, mas todo
mundo sabe que primavera em outubro e novembro, no Brasil, é quente demais. É
verão na pele, na carne.
Os preparativos iam
céleres. Felipe recusava-se a conversar com Alfredo. Afinal, a cunhada fora
dispensada sem mais aquela. Bem que a noiva rejeitada tentara reatar o noivado.
Antes da chegada de Sálua, esgueirara-se, mais de uma vez, pelo quarto de
Alfredo. Ousada! Mas ele fora claro e resoluto. Sem volta. Sem perdão. Alfredo
só pensava em Sálua, só queria Sálua em sua vida. A ex não se conformava. E,
por isso mesmo, Felipe continuava revoltado. Não iria, nem ninguém de sua
família, ao casamento.
Sálua e as irmãs mandaram fazer seus vestidos. A costureira
era uma verdadeira madame na arte da costura. E era mesmo chamada de madame:
Madame Adalmira Fontão, modista célebre
das redondezas e a predileta de todos os vips da terrinha. Escolheu um vestido
branco, com bordados de flor e folhas, na saia, no peito, junto ao decote
singelo e nos punhos das mangas longas. Um véu preso por uma delicada guirlanda
de flores de laranjeira cobria-lhe os cabelos como um chapeuzinho terminado por
babados, o que lhe conferia um ar mais angelical e mais infantil. Um apanhado
do tecido saía do alto, formando uma primeira capa, descendo nos
lados numa faixa larga que ia até o cumprimento da saia. Outro véu, de transparente, nascendo nas
costas, esvoaçava pelo corpo.
Além desses vestidos, Dona Nina completou o enxoval com
peças mais simples tanto para Sálua como para Alfredo.
O terno de Alfredo, de risca de giz, e suas calças e
camisas, seriam feitos por um alfaiate experiente.
Tudo sairia muito bem. Os primos todos estavam felizes, a
paz campeava entre eles. Adib, ainda solteiro, o caçula dos Nemes, animava
todos com suas brincadeiras e com sua alegria. Alexandre já demonstrava que maravilhoso
cunhado e amigo seria para Sálua. A figura da matriarca não era das mais
amistosas, mas, mesmo assim, percebia-se que era de seu gosto esse casamento.
Afinal, Sálua e irmãos eram seus sobrinhos. Ela, Fahda, era irmã de Salim, pai
dos órfãos.
Sálua não se dava conta de que, tanto mais se aproximava o
casamento, tanto mais chegava também o dia da separação com as irmãs, que
iriam morar na Argentina. Seu irmão, Sêmi iria ficar mais com ela, em
Piratininga, mas teria que frequentemente visitar as irmãs no país vizinho.
Marcaram as datas do casamento: 25 de dezembro, aniversário
de Sálua, daquele ano de 1921, seria o casamento civil; e em 25 de janeiro de
1922 seria o religioso.
25 de janeiro,
aniversário de São Paulo. 1922, o ano da Semana de Arte Moderna. Que bom gosto!
Como esquecer esta data? Como não lembrá-la? Como dissociá-la das grandes
comemorações de aniversário da esplêndida metrópole? Ora, eles anteviam as coisas..
O casamento civil foi realizado na casa de Êssar, com a
presença de quase (Sad e família não foram) todos os familiares, Padre José
Maria esteve também presente. A alegria era a tônica e Êssar não se cabia de
felicidade.
Sálua, discreta,
sentia-se como num sonho. Era com ela que estavam acontecendo tantas coisas?
Era dela este casamento, com este guapo rapaz, certamente cobiçado por metade
das jovens de Piratininga? Ele estava muito lindo, num terno branco, de linho
120, seu tecido predileto, ideal para o clima quente. E ela estava
resplandecente, num vestido azul, bordado com delicadas miçangas e canutilhos,
que brilhavam menos que seus belos olhos.
Adma, Rosete e Sêmi abraçavam-na ,
desejavam-lhe felicidade. Alexandre e Maria sorriam e os parabenizavam. Ao lado
de Êssar, bem mais alto que ela, olhando-o nos olhos, percebeu que a tão
desejada felicidade poderia estar bem próxima, finalmente. Confiante,
devolveu-lhe o olhar carinhoso e deixou que ele apertasse sua mão. Um calor
inusitado, desconhecido, dominou-a. Um vermelho intenso cobriu suas faces.
Êssar achou-a mais bela ainda. E, no encanto do momento, beijou-a na face,
procurando fitar seus olhos. Inútil! Sálua, envergonhada desta ousadia do
noivo, esgueirou-se entre os convidados e procurou asilo na companhia da irmã
mais velha.
Os dias sucediam-se céleres. E os preparativos para a
cerimônia religiosa seguiam animados. Num piscar de olhos, estava-se no ano de
1922. E em outra piscadela, já no dia 25 de janeiro, dia da cidade de São
Paulo.
A cerimônia religiosa foi realizada na igreja da pequena
cidade. Muitos curiosos acorreram à celebração. Uma grande dúvida pairava entre
as moças de Piratininga: quem seria esta jovem, vinda do outro lado do mundo
para roubar do convívio social o belo Alfredo? Seria tão bela assim? Seria
casamento arranjado pelos parentes? Como é que conseguira fazer Alfredo romper
um noivado legitimado pela família? Deveria ser ou muito bela ou muito
poderosa. As perguntas sucediam-se. As hipóteses eram as mais diversas. Sálua
seria filha de um sheik riquíssimo. O dote seria alto demais. E as especulações
se multiplicavam.
A curiosidade trouxera à igreja até crianças, como Carolina
Sobral, na época com onze anos, e que seria, no futuro, a mãe do Osvaldo. Ela
mesma narrou o casamento de Alfredo e Sálua, porque foi um marco na vida social
de Piratininga. Um burburinho só agitava os quatro cantos do município. Ninguém
estava disposto a perder esta celebração. Os irmãos, Alexandre e Adib, e os
amigos de Alfredo, imigrantes e brasileiros, o ajudaram em tudo, principalmente
nas brincadeiras. A alegria era senhora dos jovens corações.
Êssar estava impecável: terno preto, risca de giz largo, com
paletó de três botões, um lenço branco,
dobrado com as pontas abertas no bolso superior, um cravo branco na lapela,
camisa de smoking, de colarinho alto para gravata branca borboleta. Rosto
magro, uma leve brilhantina nos cabelos, olhos faiscantemente azuis, (quem
conheceu não se esquece), um fino e cuidado bigode, porte ereto, alto,
sobranceiro.
Sálua entrara na igreja, conduzida por Sêmi. Seu coração
batia mais que um tambor. Os olhos da cidade estavam sobre ela. Caminhava
devagar, sabia que Êssar a esperava no altar. Os dias anteriores só serviram
para comprovar o quanto Êssar a admirava. Eram delicadezas, atenções, olhares,
rosas e flores vermelhas, gestos dedicados a ela. Um galanteio só. Impossível
não confiar nele, em seus olhos perseguindo-a sempre, as mil gentilezas com que
a brindava. E agora estava a poucos passos de unir sua vida à dele. Para
sempre.
Um sussurro de admiração ecoou na igreja, à entrada da noiva.
Estava bela, encantadora. Vestido perfeito até nos detalhes. A mão esquerda já
ostentava o presente das bodas: um anel solitário de brilhante, que usou até o último dia de vida..
Sálua, em
poucos meses que estava no Brasil, já compreendia muito do que se falava, em
vista de seu conhecimento de inglês. Mas, assim mesmo, a adaptação era difícil,
não fora o carinho de Êssar. Ouvia à sua passagem a palavra linda e sabia o que
significava. Mas o que lhe importava era ser feliz e fazer Êssar feliz.
Sentira, nestes primeiros tempos de convivência, que Fahda, sua sogra daqui a
minutos, não era uma pessoa fácil de lidar. Era exigente e brava. Mas Deus e
Êssar a ajudariam a ganhar a sua amizade e respeito. O fato de ser tão jovem talvez fosse a causa
da atitude vigilante de Fahda. Queria ensinar-lhe tudo, como se ela de nada
soubesse na vida, como se os anos de internato só lhe tivessem dado um verniz
de educação e preparo. Ah, se a sogra soubesse como era admirada na escola por
tudo e em tudo que fazia. O tempo a ajudaria. Só pedia a Deus que não a fizesse
sofrer mais do que já sofrera na infância.
Para poder ser realizado o casamento, Êssar teve que lançar
mão de um estratagema: aumentar, não se sabe com que tipo de documento, a idade
da noiva. De quatorze anos, passou, numa penada, para dezessete.
Sálua seguia pelo centro da igreja, ao som da Marcha
Nupcial, com pensamentos desencontrados. Estes últimos meses passavam ante os
olhos da memória como cenas cortadas de um filme. Tremia ao pensar na mudança
radical em sua vida. Passo a passo, vencera aquela distância que a separava de
Êssar. Estava agora à sua frente. Sêmi beijou-a na testa e entregou sua mão ao
noivo, que a esperava, ansioso e exultante de alegria. Deram-se as mãos,
trêmulos, olhando-se nos olhos e apertando os dedos entrelaçados. O véu do amor
envolveu-os de tal maneira, que ficaram cegos a tudo que não fossem eles
mesmos, só os dois e as palavras do padre ecoando pela igreja.
O Padre José Maria
celebrou o casamento, com emoção e sinceridade. Era seu amigo que se casava.
Aquele amigo de cujas desventuras e trabalho rude fora testemunha. Aquele amigo
que aprendera num átimo, movido pela determinação e pelo favor de Deus, a
língua portuguesa, que ele, Padre José Maria, ensinara com dedicação e
interesse. Por isso celebrou com o maior
fervor o sacramento e, na hora da bênção, invocou a presença de Jesus para
santificar a união e proteger os noivos, até que a morte os separasse.