terça-feira, 19 de agosto de 2014

17 - Nilce - Primeira Parte- A Chefe da Gangue.



17- NILCE


Em casa tudo ou quase tudo era aos pares: papai e mamãe, Alice e Renée, Labib e Nassib, Nelson e Wilson, Norma e Sônia. O divisor de águas era Nilce. 
Até então, as crianças eram muito parecidas: claras, cabelos castanhos, ondulados: Nilce exibia pele morena e cabelos lisos.(Nelson também tem cabelos lisos). Olhos grandes, para abarcar tudo. Bem no meio dos nove irmãos Ficou muito bem assim, porque a Nilce sempre primou por ser diferente de todos. Era menina, mas tinha coragem e valentia dos meninos. Era ela quem salvava os gêmeos, quando se metiam em enrascadas. Era ela quem não quis estudar em escola de freiras, por, declaradamente,  não gostar delas   e, de um modo inaudito em nossa casa, impôs sua vontade aos pais. Foi ela mesma, que, terminando o ginásio, ensaiou alguns anos no científico, para depois abandonar de vez os estudos, a fim de casar-se.
Meticulosa e perfeccionista, ajudava Sálua na casa, limpava com detalhismos extremos, limpando até às minúcias. Depois  era um gosto entrar, de cômodo em cômodo. Tudo com aquele ar de novo, mesmo sendo velho. Tudo brilhando e cheirando bem. Esta é a Nilce de ontem e de sempre.
Depois que se casou, sua casa, é lógico, parece foto de revista de decoração. Tudo no seu lugar. Nada destoando, ou poluindo o visual com profusões de objetos. Ela é clássica.
      Há poucas fotos de Nilce, porque sempre fugiu das câmeras. Não porque não fosse bonita. Ah, era, sim, elegante, exuberante, magra, alta e sobranceira. E por que fugia das fotos? Penso que por alguma desconhecida timidez. Juro, não entendo.
            Nilce foi sempre muito trabalhadeira. Em Piratininga, ainda menina, ajudava Sálua e Alfredo na loja. Gostava de comércio, sabia onde cada coisa estava na loja. Entrava uma freguesa, pedia algo, uma tesoura, por exemplo, e, antes que qualquer pessoa se mexesse pra pegar o objeto, Nilce já tinha ido e voltado com a tesoura na mão. Do que Nilce mais gostava na loja eram os sapatos que o pai comprava do Rio Grande do Sul. Eram de salto alto e tão lindos e bons que era só chegarem e já terminava todo o estoque. E Nilce sabia vendê-los, com simpatia e sorrisos. Como fosse desembaraçada e expedita, os fregueses preferiam ser atendidos pela pequena vendedora.
            Alfredo tinha o costume de convidar os fregueses, peões, viajantes, colonos, amigos, pra tomar uma água pra refrescar e um café. O clima era quente e os fregueses, na maioria peões, ficavam sedentos.
         -- Oh, Nilce, Traga uma jarra de refresco pro pessoal,
            Nilce preparava a bandeja, catava os limões para a limonada,  e  levava pro pessoal, que se derretia em elogios pra menina. 
      -- Que delícia de limonada!
      -- Parabéns, Seu Neme, que filha prestimosa! Pois Nilce era a filha companheirinha do pai.
     Quando  acompanhava o pai à fazenda, às vezes fazia o almoço para os convidados de Alfredo, amigos, fazendeiros ou fiscais do Banco do Brasil, que vistoriavam a plantação de café, para futuros financiamentos. E tudo que fazia era de tanto capricho, que os fiscais ficavam maravilhados e, lógico, o financiamento saía mais rápido. Saíam embevecidos. Que anfitriões! Em quantos lugares iam que não serviam sequer um café.(Havia um fazendeiro que tinha no nome a expressão três copos. Joaquim três copos. Era uma garrafa de refrigerante e três copos. Era o que servia. Dizia-se que, para fugir de um convite aos fiscais, ou compradores de gado, fingia que ia tomar um remédio e se embrenhava pra dentro de casa, sob as vistas atônitas dos visitantes. Infelizmente não mentia suficientemente bem, e, quando voltava, depois de um tempo demasiado extenso pra tomar um comprimido, entregava-se palitando os dentes. Era um verdadeiro escândalo!)  Na fazenda do Sr. Alfredo Neme, não. Se tivessem sede, havia água fresquinha, potável. Servida em copos limpos. Se fosse hora de almoço, a mesa seria prodigamente servida, por aquela linda filha, uma garotinha ainda, que nunca se esquivava  de cozinhar e cozinhar com esmero.
            Uma vez, na fazenda, Alfredo teimou porque teimou que queria uma foto da filha ordenhando a vaca Perigosa, que, além de fazer jus ao nome, era enorme e medonha. Nilce tremeu na base. Aquela vaca era um terror ambulante, o pavor de qualquer sonho, imagine cara a cara. Mas Alfredo não arredava pé de seu desejo. Nilce viu que não conseguiria safar-se desta. O administrador da fazenda, Sr. Sebastião, estava com a máquina a postos. Alfredo e Nilce já faziam pose. Mas nossa valente chefa mal conseguiu tocar a teta da vaca, de tanto tremor. Assim que ouviu o clique, correu pra longe da Perigosa. Ufa! Essa foi por pouco.
            Os brinquedos dela na infância não eram muito diferentes dos brinquedos dos irmãos. Era tão traquinas quanto eles. Corria, brincava de pique, de búrica, de patinete e mais que tudo: sempre tinha um cachorro pra acompanhá-la. Todos os cães que tivemos em casa amavam a Nilce. Eles a acompanhavam, tais e quais aqueles galgos acompanhavam sua deusa, Diana, a Caçadora. 
      Quando os gêmeos se metiam em apuros com outros moleques, lá ia Nilce, correndo, com seu cão atrás, para acabar com qualquer perigo aos irmãos. E não duvidem: se tivesse que dar alguns sopapos nos atrevidos pra defender os gêmeos, ah, sabia distribuí-los muito bem! E os cães, com os dentes arreganhados, rosnando, dispersavam os pequenos inimigos e os quatro voltavam rindo pra casa.
            Há uma passagem da minha vida que explica quem é a Nilce e quem sou eu. Está em minha memória como um filme cheio de brumas. Era em Piratininga. Eu estava com dois, ou três anos. Fora picada no sítio por algum inseto muito venenoso. A ferida que se formara, na perna, assustava gregos, troianos, turcos, sírios e libaneses de casa. Minha mãe levou-me ao médico. Nem me lembro disso. No dia seguinte, isso, sim, está vivo na memória, a Nilce agarrou-me no colo e, seguida por todo o exército de irmãos, Labib, Nassib, Nelson, Wilson e Norma, ( Alice e Renée eram internas em colégio de São Paulo ) foi esconder-me na garagem, que ficava distante da casa. Lá a chefa da gangue me instruiu:
            -- Sônia, não se deixe enganar! O papai vai chamar você e falar que vai te levar pra fazenda. Não acredite! É mentira!! Ele vai te levar ao médico, para você tomar uma injeção na perna! Entendeu? Diga que não quer ir. É INJEÇÃO NA PERNA!!! (Gritando!)
            Ficamos em silêncio, prendendo a respiração. Passados quartos de hora, eu, quase dormindo, nos braços da chefa. Todos os irmãos atentos aos sons que vinham da casa. Não demorou nada e ouvimos:
            -- Sônia! Sonhita!
            Era a voz de meu pai chamando-me. Nilce mandou todos ficarem mudos e calados. Ninguém se mexia. E a voz de meu pai cada vez mais insistente, chamando por mim. Todos estavam imbuídos do dever de salvar-me da fatídica – ou seria fatal? - injeção. Percebíamos que a voz me procurava por todos os cômodos da casa. E percebíamos, com temor, que a voz  estava cada vez mais próxima. Pronto! Ele nos encontrara!
            -- Sonhita -- Aproximou-se de mim -- Quer ir com o papai pra fazenda?
            Por incrível que pudesse parecer, meu pai ignorou totalmente a gangue e a chefa da gangue. Só tinha olhos e voz pra mim. E, por mais incrível que pudesse parecer, nenhuma luzinha se acendeu no meu cérebro duro, ao ouvir da boca de meu pai a frase anteriormente proferida pela profetisa Nilce. 
            Quem me conhece, sabe que minha maior qualidade e, ao mesmo tempo, meu maior defeito é acreditar nas pessoas. Isto já era minha peculiaridade nessa pouca idade. Portanto, quando recebi aquele convite tentador, estendi os bracinhos pro meu pápi e me abracei ao seu pescoço.
            Nilce não se conformava:
            __ Burrraaaaaaaaaaá!
            Sem ao menos dignar-se a olhar meus irmãos, boquiabertos com minha total desatenção aos avisos e profecias feitos há minutos atrás, meu pai me carregou para o carro e, em companhia de minha mãe, fomos – não à fazenda, oh, não! – e, sim, ao consultório do doutor. Lá, deitada na maca, finalmente caiu a ficha. Então não tinha nada de fazenda. Então era verdade o que a Nilce falara. O médico, examinando a ferida, aproximou uma coisa de mim. Sim! Era uma portentosa agulha de injeção. A voz da Nilce e o terror do bando me alcançaram finalmente, desde o dedo do pé até os fios de meu cabelo , mais crespo de horror. Não hesitei e meti um pontapé na mão do médico. Minha mãe ficou mortificada por minha gentileza precoce:”Minha filha!", A decepção de minha mãe comigo, fez que lágrimas quentes viessem aos meus olhos. Agora chorava abertamente, misto de tristeza e de medo. Aquietei chorando e chorando aguentei a terrível picada NA PERNA! Desta experiência ficaram as cicatrizes na perna esquerda, dois olhos de pele transparente, onde talvez esteja refletido o pontapé na mão do médico. Nilce, Nilce, desta vez você não me salvou.
Lembro-me muito bem, uma tarde fomos Nilce, Norma e eu à matinée do Cine Bauru. Eu era ainda uma criança, a Norma talvez uma pré-adolescente, mas a Nilce já era uma moça de fazer torcer pescoços na rua. Tinha um corpo só comparável ao da mais bem paga top model, com a vantagem de nem precisar de silicone, para correções da natureza. Tinha tudo certinho, sem excesso, nada sobrando ou faltando. Nada demais ou de menos, Tudo na medida certa.  Umas pernas morenas, fortes, um corpo magro, cheio de curvas, realçado pelo vestido de jérsei. Alta, soberana, porte de rainha. Parecia que eu estava vivendo um dos filmes a que assistíamos sempre. Só que a protagonista ERA MINHA IRMÃ! Nossa! Ela era um estouro! Eu era muito nova, mas lembro-me bem do orgulho que me invadiu, vendo aquelas caras de vizinhos e transeuntes, completamente abobalhados por seu porte altivo, elegante, sobranceiro e perigoso.
Linda, sim, classuda, mas, ah, vá mexer com ela, vá!. Aqueles olhos grandes, castanhos, cabelos pretos, lisos, era uma figura de sonho inatingível. Ela era difícil pra caramba. Quando, na época, se falava em moça difícil, podia-se pensar nela. Era o protótipo.  Ah, houve uma vez, em Piratininga, fomos convidados para uma festa. Meus pais eram amigos de todos e nos levaram, lógico. Não tinha esta coisa de ir a festas sem os filhos. Até eu, que era tão pequena, fui. No meio da festa, começou um bailinho. E um tal rapaz tirou Nilce pra dançar. Não sei de que jeito foi que ele pediu uma contradança, só sei que SPLASH! Só se ouviu o barulho da bofetada que a Nilce deu nele! Na hora foi meio chato; todo mundo ficou paralisado, olhos arregalados, estarrecidos, estupefactos, (com c mudo mesmo para dar o impacto do momento.) Meus pais queriam saber o porquê do tabefe. Não sei explicar também. Nilce talvez pensasse que ele fosse casado e tinha tido a ousadia de tirá-la para dançar? (Merecia mais um sopapo.) Ou, bichinho do mato, achou-o violentamente feio e atrevido e sapecou-lhe o bofetão? Ou ele tinha cara de velho e foi olhar justamente pra ela, que estava destinada a encontrar logo seu príncipe encantado? (E seu príncipe não tinha nada a ver com aquele cara de babão. Bolacha nele!) Ou, dançando com ela, quis apertar-lhe o corpo formoso e virginal? ( Oh, já estou ficando com raiva dele. Também minha mão coça com vontade de lhe dar um tapão.) Pois era assim a Nilce. Até que...
Houve um baile no Tênis Clube ...

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

16 - Nassib


16 - Nassib



      Sálua já estava em estado avançado de gravidez: seria o quarto filho. Sua barriga estava crescida e alta. Não queria saber se era menino ou menina. Queria outro filho perfeito, como os anteriores. Sonhava: a inteligência da Alice, mais a beleza e alegria da Renée, mais a habilidade e gostosura de Labib seria igual a  ... Seria menino? Seria menina? Ah, logo saberia. Bastava que fosse um nenê perfeito.
      Do mesmo modo que os outros partos, uma noite, Sálua sentiu a bolsa arrebentar e não deu tempo pra nada: a parteira chegou voando carregada por Alfredo e quase encontra o bebê nos braços da orgulhosa mãe.
     Pois era o Nassib, chorando a plenos pulmões, avisando a todos que chegara pra mudar tudo que estivesse estabelecido. Sua gritaria chamou a atenção até de quem passava na rua. Ele não era de chegar despercebido, não. Chegara pra valer. Pra fazer valer seu direito perene de ser o centro das atenções.  E merecê-las.
      Desde pequeno, seu temperamento alegre, brincalhão, mexendo com todos, e aprontando artes, conquistava quem dele se aproximasse. Tinha um brilho no olhar, uma vivacidade e um jeito de brincar tão agradável que logo se tornou uma das  principais figuras da família Neme.
      
   Labib e Nassib, que dupla invencível! Labib recebeu Nassib como se pode receber o irmão amado. Sem ciúmes, sem invejas, na expressão dos pais: ahlaosahla! Seja bem-vindo, irmão. Sempre seremos amigos. Passaram a infância com brinquedos comuns aos dois, não existia meu ou teu: só o nosso. Tinham muito engenho e estavam a todo instante construindo algo para se entreter, com afinidade e alegria. Brincavam de tudo e tinham boa roda de amigos em Piratininga. Só quando mais moços, já morando em Bauru, é que teriam amigos próprios.  Mas um seria sempre o melhor amigo do outro. Todos os dias, até os últimos anos de vida de Nassib, que Deus chamou primeiro, trocariam, durante todos os dias, inúmeros telefonemas um ao outro. Assuntos? Negócios, família, consultas e pataquadas.
      
      Quando éramos pequenos, (isso contado por minha mãe), estávamos todos, à mesa, nove filhos, mais avó, família numerosa, sentados como anjinhos ( papai era durão nessa época; explico: quando virou avô, ficou um doce) e, de repente, um dos filhos começava a choramingar e a se agitar. Era obra do Nassib, dando chutes por baixo da mesa, ou beliscões. Então ficou padrão: quando um de nós começasse a se agitar, demonstrando aborrecimento, só poderia ser arte do Nassib.
      Dele ressaltemos a beleza inenarrável de seus olhos castanho-claros, de cílios longos e negros.Acho que nunca vi olhos castanhos tão incríveis! Verdadeiros poemas de luz! Hahahá! O bagunceiro não podia esconder seu romantismo com aqueles olhos! O traquinas e mexedor também tinha este lado, só revelado quando começou a namorar. Depois escancarou o romantismo que boiava em seus olhos, ao eleger Roberto Carlos e Júlio Iglesias seus cantores prediletos. E também Martinho da Vila, com seu “já tive mulheres" .
      Como Labib, fez o então primário em Piratininga e, depois, continuou os estudos em Bauru, no Colégio Guedes de Azevedo.
      Iam e voltavam de trem, Nassib aprontando muito na escola, na estação, no trem, na hora da chegada do trem. 
      O chefe da estação procurou minha mãe e relatou que o Nassib, na ânsia de chegar em casa, pulava do trem em movimento, atitude proibida além de perigosa.E pintou a cena com cores tão terríveis que minha mãe se apavorou e forçou Alfredo a pensar em sair de Piratininga e morar em Bauru.
      E, assim, Alfredo, mesmo um pouco a contragosto, mudou-se de Piratininga.
      Depois do curso técnico de contabilidade, Nassib ingressou na faculdade, FAAP, no curso de Economia. Portanto, ficou em SP, durante esse tempo de estudo. Morou numa pensão de estudantes, na Avenida Angélica. Seus estudos iam bem, até que ele resolveu que não era por aí.
      Alguns anos mais tarde, reiniciou  os estudos, agora Curso de Direito , em Uberaba, MG.  Dois anos se passaram e novamente aquela  certeza de que não era esse o caminho. Seu dom era outro, atávico. O comércio o chamava e, finalmente, resolveu atender aos seus apelos.
      
      Nassib gostava de  música, mas  diferentemente do modo do  Labib. Dizia-me à queima-roupa: " não gosto de nada que você toca". Durma-se com essa! 
      Seu antiestresse era conversar. Gostava de inventar coisas, de narrar fatos exagerando nas cores, era divertido e toda reunião só teria real sucesso se ele estivesse presente. Suas narrações de fatos monopolizavam a atenção de todos, porque eram vivazes, engraçadas e saborosas, cheias de fatos inexplicáveis e insólitos.Por estas qualidades, os filhos e sobrinhos o amavam e se divertiam com ele.
      A voz do Nassib era suave, um tom mais alto que a do irmão. Ambos cantavam, sob o chuveiro. Mas só.
      Labib, vamos dizer, tinha sempre sobre si a proteção materna. E Nassib, a proteção paterna. Isso equilibrava  as coisas na família.Tudo a natureza equilibrava: o Nelson era um queridinho do papai: o Wílson, da mamãe. Se eu era a protegida do Labib, a Norma era a irmã favorita do Nassib. Tudo se encaixava. Eu era a predileta da Alice, a Norma, da Renée, da Nilce e de todo o mundo!! Encantadora!!! 
      Norma e Nassb davam-se tão bem! Quando, depois da sessão de cinema, voltava da Rua Primeiro de Agosto, Nassib trazia sempre um lanche pra Norma, que, caridosamente, repartia comigo.(Bom apetite é característico da família.)
     Se Nassib tivesse negócios a tratar em São Paulo, Norma lhe fazia companhia no bate-volta. Eram irmãos unidos e felizes.
      Nassib  teve namoradas, uma delas uma querida prima. Mas, por intrigas de amigos, (e ainda dizem que as mulheres é que são fofoqueiras), rompeu o namoro. 
      Seus amigos mais chegados eram o primo Dudo, o primo Waldemar,  um bauruense, advogado, João Cruz, além do primo Humberto, mais irmão que primo, pra todos nós. Lógico, Labib sempre o melhor amigo de Nassib..
      Sua vida social era entremeada por namoricos, bailes e brincadeiras sem fim com a família. Na hora do café, após as refeições, perguntava-nos se queríamos café batido; Diante da resposta afirmativa, já entremeada de risos, subia na cadeira e, à altura de sua cabeça, erguia o bule e acertava o café na xícara sobre a mesa. Lógico que com a maior empolgação, café pra todo o lado e gargalhadas sem fim.
 
      Mais tarde, como já passara a graça de dar chutes, preferia mexer com os irmãos através de palavras gozadoras e brincadeiras. Ah, não tinha parada, mesmo.
      Nassib e Labib eram os filhos mais velhos e sobre eles recaía maior responsabilidade. Eram organizados, desde suas coisas até às roupas. Vai daí que Nelson e Wilson, com vida social fervilhante, volta e meia se valiam  das gavetas dos brothrers mais velhos e usavam seus pertences: camisas, calças, cuecas, lenços, novinhos, guardadinhos para alguma ocasião especial.
      Houve uma noite em que o Nelson se arrumou todo para um baile. Nassib olhou-o e:
      --- Está alinhado, mano!
       E olhou-o mais detidamente.
      --- Epa! Esse terno é meu! Pode tirar.
      Nelson, um tanto aborrecido, tirou o paletó.
      --- Pode tirar a calça também.
      Obedientemente, escondendo um sorriso, que parecia amarelo, mas já era de troça, o gêmeo mais velho tirou as calças.
      --- Olha só isto, "sô"! A gravata também!
      Nelson tirou a gravata, já sorrindo abertamente o cara de pau.
      --- Mas a camisa é minha, interveio Labib, até aquele momento só apreciando a situação.
      --- Pode tirar: em uníssono, gritaram Labib e Nassib.
      E lá se foi a camisa. A cena era tão cômica, que ninguém se sentiu ofendido. E lá estava o Nelson, só de cueca, com uma cara que nos fazia explodir em risos. Bem aí o Nassib gritou, vitorioso:
      ---  A cueca é minha!!! 
      Pronto! Nada mais a dizer. A não ser que as caras do Nelson e os imperativos do Nassib nos arrebentaram de gargalhar e seriam para sempre inesquecíveis.Ah, calma,  pessoal! O streap tease parou por aí.
      Nassib era apaixonado pelo pai. Davam-se muito bem, entendiam-se também nos negócios. Quando Alfredão resolvia passar algum tempo em viagem com Sálua, Norma e Sônia -- as outras filhas já estavam casadas --  Nassib ia para nossa casa, logo depois do Jantar, com uma missão: fazer o pai desistir da viagem. Assim que chegava, com  sua família, não parava de argumentar com o pai sobre a bobagem de se viajar e falava e falava e falava. Até que nosso pai, já completamente enfadado de tantos empecilhos, exclamava em alto e bom som:
      --- Está bem! Não vou viajar mais!
      Neste ponto, Nassib atingira seu objetivo: o de o pai não se distanciar dele. E assim poderia dar o fora e dormir sossegado.
      Mal sabia ele que, logo que acordasse, na manhã seguinte, Alfredo chamaria Sálua e as meninas (sempre) e diria: 
      --- Vamos pra São Paulo!
      Imagino só a cara dele quando descobrisse que fôramos para São Paulo.

      Houve uma época em que Alfredo comprou um sítio, em Conceição, perto de Agudos, e onde se descobriu água mineral de alta qualidade. Alfredo a comercializou com o nome de Fonte Azul. Comprou um caminhão e Labib e Nassib, adolescentes,  faziam as entregas. Pegaram tanto gosto, que começaram a cabular as aulas. Quando Alfredo teve conhecimento disso, extinguiu o negócio. Os estudos sempre seriam mais importantes que o dinheiro. 

       
      Nassib e Labib, com os irmãos Nelson e Wilson, tiveram uma agência de carros. No começo, traziam tratores Massey Ferguson. Depois carros: lindos sedãs da marca Studebaker. Cada um mais lindo que o outro.E, às vezes, vinham com a capota de outra cor! Belíssimos!




Mais tarde, foi a vez da Vemag, com o sucesso do DKW. Eram tempos felizes e prósperos.


 


      Para atender à demanda, construíram um prédio que serviria de escritório de administração e oficina de carros. Os problemas se agigantaram e dissolveu-se a firma e a sociedade.
      Algum tempo antes da dissolução da firma, ao passar na Gustavo Maciel, em frente ao Colégio São José -- trajeto automático de quem saísse da Cussi Jr, 11-40 -- Nassib viu, à porta do pensionato das freiras, um grupo de jovens, entre as quais uma garota, cujos olhos derramavam mel de doçura: Jeannete. Aí se iniciou um amor que duraria até seu último suspiro.
      Jeannete, por coisas do destino, também era patrícia. Morava em Guarantã e cursava Pedagogia em Bauru. O namoro decolou maravilhosamente. Jeannete sempre foi o verso do Nassib. Se ele sempre foi estouvado, Jeannete era a ponderação personificada. Se o Nassib exagerava nos detalhes de narração, Jeannete sempre se ateve à justeza dos fatos.
      Mas, quando as coisas não estavam bem nos negócios, Nassib resolveu sumir da vida de sua amada, por não estar em condições de assumir o matrimônio. Ficaram alguns anos separados.
      Nessa época, comecei a lecionar  em Pirajuí.  E, às vezes, a Jeannete e eu nos encontrávamos na rodoviária. 
      À noite, com o Nassib, cheia de mistério, com os olhos cheios de insinuações, eu:
      ---Adivinha  quem encontrei hoje.
      Sua expressão se transformava, toda  iluminada. Nem preciso declarar que meu curto diálogo com minha então futura cunhada tinha que ser repetido umas oito vezes. Isso com aplausos dos ouvintes, Labib, Nelson, Wilson e Norma. Uma família assim é o sal da vida. Nestes momentos, eu me tornava a irmã preferida dele. Hahahá! (Também tenho que dar a mão à palmatória: nunca fui esse tipo de pessoa interessante, que sustentasse um diálogo com assuntos vivos. Hahahá! Não, mesmo.  Eu era a típica chatinha. O magistério foi me moldando e me fazendo evoluir. Agora sou só um tantinho chata. )
      Quando a mãe da Jeannete faleceu, Nassib nem pensou duas vezes. Voou pra Guarantã, a fim de consolar seu grande amor. E o namoro foi retomado.
      Ficaram noivos, bem quando eu fazia uma excursão com alunos. Fiquei bem chateada, mas a irmã predileta ali estava. Ainda bem! Nem todos eram invisíveis! (Como veem, nesta época eu era algo como transparente, invisível, portanto sem nenhuma importância. .Mas as coisas mudariam, quando eu me unisse ao Osvaldo!)
     O casamento de Nassib e Jeannete foi realizado, na Igreja Santa Teresinha, porque  Jeannete já estava morando em Bauru.
      O primeiro filho, Nassib Neme Filho, nosso amado Binho, nasceu depois de uns seis anos de casamento. Imaginem só de quanto amor foi recebido. Binho tem muito do pai e a sensatez da mãe. 
      Mais seis anos se passaram e chega o Neimar, pra encher de júbilo o lar. E, quando todos pensavam que Neimar fosse o caçula, chega do céu um anjinho de olhos de jabuticaba, uma menina, uma perfeição. Seu nome era pra ser Karen, mas, quando Osvaldo ganhou  uma filha, quis homenagear o cunhado, colocando o nome que Nassib escolheria, se tivesse uma menina: Karen. Ora, nessa época, todos pensavam que Neimar seria o caçula da família. Mas todos nos enganamos. Um ano e meio depois do nascimento da nossa  Karen, nascia a Jane.
       Nassib foi comerciante, e daquele tipo de comerciante de quem você quer comprar sempre. Sua loja era de pisos e carpetes.Tinha algo em seu olhar, enquanto expunha as vantagens do produto, que fascinava. Tinha estrela na testa, dizíamos. Sabem aquela história do Jacó? Para ele, com seu trabalho, tudo dava certo? Pois assim era com o Nassib. Talvez fosse o conhecimento profundo do que comercializava. Talvez pela segurança que imprimia ao vender. Talvez fosse a sinceridade com que realmente queria servir aos  fregueses. Sim,  poderia escrever um manual do bom comerciante. Mais que tudo, havia sempre nele o desejo de ajudar o próximo. Se alguém chegasse com alguma dor, ou com algum problema, esquecia ( ou parecia esquecer) a venda e, à sua mesa, acomodava à sua frente o sofredor, e dava asas à sua imaginação, calcada em leituras e em vivências. O "paciente" saía dali com um programa de solução do problema. E, lógico, efetivando a compra do produto, visto antes da "consulta". Se Labib era um "engenheiro de alma",  Nassib era o médico. 
      Certa feita, receitou pra nossa mãe vinte dias de dieta de limão, a fim de combater o colesterol. Todo o mundo conhece a história: primeiro dia: um limão . Segundo: dois limões. E, assim, até o décimo, quando começaria em ordem inversa até que chegasse a um limão. Pode parecer mentira. Mas deu certo pra nossa mãezinha. 
      Enfim, só pode  me entender quem esteve com Nassib e o viu em seu comércio, em sua casa, ou na Cussi Jr.
      Até uma de minhas amigas, com um problema que lhe tirava o sono, quando conheceu Nassib, num segundo já estava no consultório  -- a copa de nossa casa -- do médico de alma, segredando suas aflições. Posso falar? Também, passados alguns meses, a consulta surtiu plenamente seus resultados.  

      Tinha empregados de décadas ao seu lado. E tratava-os com justiça, amizade e autoridade. Um deles era o que tirava minha mãe dos apuros hidráulicos, ou elétricos de sua casa.
      Às vezes, em rodas familiares, Nassib se empolgava com seus relatos e exorbitava nas tintas e nos próprios fatos. Diante de nossos olhares estupefatos, pedia a sua esposa a confirmação do relato:
      --- Não é, Jana?
      E ela, com muita meiguice:
      --- Não foi beeem assim, Náááá!
           Ao ouvirmos isso, desatávamos a rir.
      É! Nenhuma reunião tinha graça sem ele. É que o Nassib apimentava as conversas. 
      Como pai, não se eximia de nada.Sempre foi um pai carinhoso, prestativo, ativo.
      O problema que enfrentou com a perna , deixando-o claudicante, não esmoreceu nunca suas atividades.Continuou a trabalhar do mesmo modo. Nunca quis saber de cirurgias, porque tinha muito medo de morrer durante a intervenção e deixar os filhos e esposa. Ficamos proibidos por ele de falar em cirurgia. E lhe obedecemos.
    Quando Osvaldo se casou comigo, fui alçada a um patamar superior.  Deixei de ser a invisível e sem importância.  Nassib gostava e admirava tanto o Osvaldo que aprendeu a me tolerar, com a minha sem gracice. Passamos a conversar muito e ainda acabei por ganhar seu amor.
       Quando nossos pais nos deixaram, Nassib, que nem era tão mais velho que eu, apenas nove anos, me abrigou sob suas asas, repetindo o papel que nossos pais faziam.  Ao deixarmos Osvaldo e eu Bauru para voltarmos a São Paulo:telefonava ao cabo de quatro horas, para se certificar que chegáramos bem
      E, se houvesse tempestades, inundações em SP, telefonava preocupado em saber se  nós três estávamos seguros.
      Quando Osvaldo ficou doente, eram duas três ligações por dia. A Tita pegou medo dele, rsrsrs, porque Nassib não aceitava as respostas que ela lhe dava. Ah, aquela energia!! Se ela dissesse, querendo salvaguardar nossa intimidade: " tudo está  bem", ele irrompia nervoso:" como tudo está bem se eles foram ao médico?" Vai daí é que ela tremia ao receber telefonema dele. Até hoje ela guarda esse choque. Hahahá! É o Nassib, pleno!
      Nassib, mesmo com dores fortes na perna, não delegava nada a ninguém: e o telefone passou a ser suas pernas. Resolvia tudo, sabia tudo, comprava, vendia, consertava, cuidava, tudo pelo telefone. Acho que herdei um pouco dessa convicção de que por telefone tudo se resolve. Ou quase tudo.
      Nem narrei como Nassib foi  irmão mais que exemplar para o Wílson, durante sua enfermidade. De tudo que a Jeannete cozinhava para sua família, já estava reservado o prato do Wilson, que o Nassib, com a perna dolorida,  levava à casa do irmão, fazendo-lhe não só companhia como , principalmente, fazendo-o esquecer-se um pouco da dura realidade. Nunca pensava em se poupar. Na companhia dos irmãos e do primo Humberto, que era amigo e tão irmão quanto os outros três, levaram o Wilson para médicos de Bauru, de cidades vizinhas e, mesmo de Ribeirão  Preto. 
 
     A mesma dedicação, durante a doença do pai: Nassib, com aquela perna dolorosa, não tinha preguiça, nem moleza: ia duas, três vezes por dia ver o pai, conversar com ele ( mesmo que Alfredo não conseguisse falar) , e assistir a mãe no que a casa ou o pai precisassem. Passava seus momentos livres jogando xadrez com Alfredo, esporte que se estendeu ao Binho, que também assim entretinha o avô. E  foi assim que a indesejada das gentes  levou Alfredo. Rodeado dos filhos e noras e netos, ao lado, Sálua. À frente, o tabuleiro de xadrez. Nassib quase nem percebeu. Alfredo recostou a cabeça na poltrona, fechou os olhos e, nessa paz, rodeado de amor, partiu.
      Nassib ficou desesperado. Depois da missa de sétimo dia, não conseguia voltar à casa dos pais. 
      O tempo foi passando. Numa visita a minha mãe, ela me confidenciou: "o Nassib gostava só de seu pai. Faz quinze dias que não vem aqui". Ouvi e, sorrateiramente, telefonei ao meu irmão e repeti o que ouvira. À noite ele, superando-se, estava em casa e tudo voltou ao amor de sempre.

NOTÍCIAS:
      Binho é um orgulho. É engenheiro civil e é aquele em cujas mãos Karen e eu podemos depositar nossas  vidas.
      Neimar, um querido, é advogado.
      Jane, nossa caçulinha, é tudo de bom: administradora, viajante, estudiosa e, lógico, sempre a primeira em tudo. mora em Paris, sua paixão.
       Ainda não falei do Nassib tio. Para minha filha, o tio perfeito, cujas tiradas inesperadas e fora dos padrões costumeiros a conquistaram pra sempre.
      Nassib nos deixou no dia 15 do mês de agosto, de 1998. Foi uma viagem repentina, numa falha fulminante do coração. Naquele dia, tínhamos Osvaldo, Karen e eu comprado os sofás da sala, para o novo apartamento, em que iríamos morar. E eu sonhava, desde que os escolhera, que para o Nassib seriam ótimos e muito confortáveis. Antevia os dois amigos nas poltronas,  e conversando. Pena que foi sonho irrealizado. Essa ausência  doeu muito e dói sempre.
      Mas há dois grandes consolos. As lembranças deliciosas que nos legou e a família amorosa que carrega seu brilho e seu caráter, meu irmão.