17- NILCE
Em casa tudo ou quase tudo era aos pares: papai e mamãe,
Alice e Renée, Labib e Nassib, Nelson e Wilson, Norma e Sônia. O divisor de
águas era Nilce.
Até então, as crianças eram muito parecidas: claras, cabelos castanhos, ondulados: Nilce exibia pele morena e cabelos lisos.(Nelson também tem cabelos lisos). Olhos grandes, para abarcar tudo. Bem no meio dos nove irmãos Ficou muito bem assim, porque a Nilce sempre primou por ser diferente de todos. Era menina, mas tinha coragem e valentia dos meninos. Era ela quem salvava os gêmeos, quando se metiam em enrascadas. Era ela quem não quis estudar em escola de freiras, por, declaradamente, não gostar delas e, de um modo inaudito em nossa casa, impôs sua vontade aos pais. Foi ela mesma, que, terminando o ginásio, ensaiou alguns anos no científico, para depois abandonar de vez os estudos, a fim de casar-se.
Até então, as crianças eram muito parecidas: claras, cabelos castanhos, ondulados: Nilce exibia pele morena e cabelos lisos.(Nelson também tem cabelos lisos). Olhos grandes, para abarcar tudo. Bem no meio dos nove irmãos Ficou muito bem assim, porque a Nilce sempre primou por ser diferente de todos. Era menina, mas tinha coragem e valentia dos meninos. Era ela quem salvava os gêmeos, quando se metiam em enrascadas. Era ela quem não quis estudar em escola de freiras, por, declaradamente, não gostar delas e, de um modo inaudito em nossa casa, impôs sua vontade aos pais. Foi ela mesma, que, terminando o ginásio, ensaiou alguns anos no científico, para depois abandonar de vez os estudos, a fim de casar-se.
Meticulosa e perfeccionista, ajudava Sálua na casa,
limpava com detalhismos extremos, limpando até às minúcias. Depois era um gosto entrar, de cômodo em cômodo. Tudo com aquele
ar de novo, mesmo sendo velho. Tudo brilhando e cheirando bem. Esta é a Nilce
de ontem e de sempre.
Depois que se casou, sua casa, é lógico, parece foto de
revista de decoração. Tudo no seu lugar. Nada destoando, ou poluindo o visual
com profusões de objetos. Ela é clássica.
Há poucas fotos de Nilce, porque sempre fugiu das câmeras. Não porque não fosse bonita. Ah, era, sim, elegante, exuberante, magra, alta e sobranceira. E por que fugia das fotos? Penso que por alguma desconhecida timidez. Juro, não entendo.
Há poucas fotos de Nilce, porque sempre fugiu das câmeras. Não porque não fosse bonita. Ah, era, sim, elegante, exuberante, magra, alta e sobranceira. E por que fugia das fotos? Penso que por alguma desconhecida timidez. Juro, não entendo.
Nilce
foi sempre muito trabalhadeira. Em Piratininga, ainda menina, ajudava Sálua e
Alfredo na loja. Gostava de comércio, sabia onde cada coisa estava na loja.
Entrava uma freguesa, pedia algo, uma tesoura, por exemplo, e, antes que qualquer
pessoa se mexesse pra pegar o objeto, Nilce já tinha ido e voltado com a
tesoura na mão. Do que Nilce mais gostava na loja eram os sapatos que o pai
comprava do Rio Grande do Sul. Eram de salto alto e tão lindos e bons que era
só chegarem e já terminava todo o estoque. E Nilce sabia vendê-los, com simpatia e sorrisos. Como fosse desembaraçada e expedita, os fregueses preferiam ser atendidos pela pequena vendedora.
Alfredo
tinha o costume de convidar os fregueses, peões, viajantes, colonos, amigos,
pra tomar uma água pra refrescar e um café. O clima era quente e os fregueses, na maioria
peões, ficavam sedentos.
-- Oh,
Nilce, Traga uma jarra de refresco pro pessoal,
Nilce
preparava a bandeja, catava os limões para a limonada, e levava pro
pessoal, que se derretia em elogios pra menina.
-- Que delícia de limonada!
-- Parabéns, Seu Neme, que filha prestimosa! Pois Nilce era a filha companheirinha do pai.
-- Que delícia de limonada!
-- Parabéns, Seu Neme, que filha prestimosa! Pois Nilce era a filha companheirinha do pai.
Quando acompanhava o pai à fazenda, às vezes fazia o almoço para os convidados
de Alfredo, amigos, fazendeiros ou fiscais do Banco do Brasil, que vistoriavam
a plantação de café, para futuros financiamentos. E tudo que fazia era de
tanto capricho, que os fiscais ficavam maravilhados e, lógico, o financiamento
saía mais rápido. Saíam embevecidos. Que anfitriões! Em quantos lugares iam que
não serviam sequer um café.(Havia um fazendeiro que tinha no nome a expressão
três copos. Joaquim três copos. Era uma garrafa de refrigerante e três copos.
Era o que servia. Dizia-se que, para fugir de um convite aos fiscais, ou
compradores de gado, fingia que ia tomar um remédio e se embrenhava pra dentro
de casa, sob as vistas atônitas dos visitantes. Infelizmente não mentia
suficientemente bem, e, quando voltava, depois de um tempo demasiado extenso
pra tomar um comprimido, entregava-se palitando os dentes. Era um verdadeiro escândalo!) Na fazenda do Sr. Alfredo
Neme, não. Se tivessem sede, havia água fresquinha, potável. Servida em copos
limpos. Se fosse hora de almoço, a mesa seria prodigamente servida, por aquela
linda filha, uma garotinha ainda, que nunca se esquivava de cozinhar e cozinhar com esmero.
Uma
vez, na fazenda, Alfredo teimou porque teimou que queria uma foto da filha
ordenhando a vaca Perigosa, que, além de fazer jus ao nome, era enorme e
medonha. Nilce tremeu na base. Aquela vaca era um terror ambulante, o pavor de
qualquer sonho, imagine cara a cara. Mas Alfredo não arredava pé de seu
desejo. Nilce viu que não conseguiria safar-se desta. O administrador da
fazenda, Sr. Sebastião, estava com a máquina a postos. Alfredo e Nilce já
faziam pose. Mas nossa valente chefa mal conseguiu tocar a teta da vaca, de
tanto tremor. Assim que ouviu o clique, correu pra longe da Perigosa. Ufa! Essa
foi por pouco.
Os
brinquedos dela na infância não eram muito diferentes dos brinquedos dos
irmãos. Era tão traquinas quanto eles. Corria, brincava de pique, de búrica, de
patinete e mais que tudo: sempre tinha um cachorro pra acompanhá-la. Todos os
cães que tivemos em casa amavam a Nilce. Eles a acompanhavam, tais e quais
aqueles galgos acompanhavam sua deusa, Diana, a Caçadora.
Quando os gêmeos se metiam em apuros com outros moleques, lá ia Nilce, correndo, com seu cão atrás, para acabar com qualquer perigo aos irmãos. E não duvidem: se tivesse que dar alguns sopapos nos atrevidos pra defender os gêmeos, ah, sabia distribuí-los muito bem! E os cães, com os dentes arreganhados, rosnando, dispersavam os pequenos inimigos e os quatro voltavam rindo pra casa.
Quando os gêmeos se metiam em apuros com outros moleques, lá ia Nilce, correndo, com seu cão atrás, para acabar com qualquer perigo aos irmãos. E não duvidem: se tivesse que dar alguns sopapos nos atrevidos pra defender os gêmeos, ah, sabia distribuí-los muito bem! E os cães, com os dentes arreganhados, rosnando, dispersavam os pequenos inimigos e os quatro voltavam rindo pra casa.
Há uma
passagem da minha vida que explica quem é a Nilce e quem sou eu. Está em minha memória como um filme cheio de brumas. Era em Piratininga. Eu estava com
dois, ou três anos. Fora picada no sítio por algum inseto muito venenoso. A ferida que
se formara, na perna, assustava gregos, troianos, turcos, sírios e libaneses de casa. Minha mãe levou-me
ao médico. Nem me lembro disso. No dia seguinte, isso, sim, está vivo na memória, a Nilce
agarrou-me no colo e, seguida por todo o exército de irmãos, Labib, Nassib,
Nelson, Wilson e Norma, ( Alice e Renée eram internas em colégio de São Paulo )
foi esconder-me na garagem, que ficava distante da casa. Lá a chefa da gangue me
instruiu:
--
Sônia, não se deixe enganar! O papai vai chamar você e falar que vai te levar pra fazenda. Não acredite! É mentira!! Ele vai te levar ao médico, para você
tomar uma injeção na perna! Entendeu? Diga que não quer ir. É INJEÇÃO NA PERNA!!! (Gritando!)
Ficamos
em silêncio, prendendo a respiração. Passados quartos de hora, eu, quase
dormindo, nos braços da chefa. Todos os irmãos atentos aos sons que vinham da
casa. Não demorou nada e ouvimos:
--
Sônia! Sonhita!
Era a
voz de meu pai chamando-me. Nilce mandou todos ficarem mudos e calados. Ninguém
se mexia. E a voz de meu pai cada vez mais insistente, chamando por mim. Todos
estavam imbuídos do dever de salvar-me da fatídica – ou seria fatal? - injeção.
Percebíamos que a voz me procurava por todos os cômodos da casa. E percebíamos,
com temor, que a voz estava cada vez
mais próxima. Pronto! Ele nos encontrara!
-- Sonhita -- Aproximou-se de mim -- Quer ir com o papai pra fazenda?
Por
incrível que pudesse parecer, meu pai ignorou totalmente a gangue e a chefa da
gangue. Só tinha olhos e voz pra mim. E, por mais incrível que pudesse parecer,
nenhuma luzinha se acendeu no meu cérebro duro, ao ouvir da boca de meu pai a
frase anteriormente proferida pela profetisa Nilce.
Quem me
conhece, sabe que minha maior qualidade e, ao mesmo tempo, meu maior defeito é
acreditar nas pessoas. Isto já era minha peculiaridade nessa pouca idade. Portanto,
quando recebi aquele convite tentador, estendi os bracinhos pro meu pápi e me
abracei ao seu pescoço.
Nilce
não se conformava:
__
Burrraaaaaaaaaaá!
Sem ao
menos dignar-se a olhar meus irmãos, boquiabertos com minha total desatenção
aos avisos e profecias feitos há minutos atrás, meu pai me carregou para o
carro e, em companhia de minha mãe, fomos – não à fazenda, oh, não! – e, sim, ao
consultório do doutor. Lá, deitada na maca, finalmente caiu a ficha. Então não
tinha nada de fazenda. Então era verdade o que a Nilce falara. O médico,
examinando a ferida, aproximou uma coisa de mim. Sim! Era uma portentosa agulha
de injeção. A voz da Nilce e o terror do bando me alcançaram finalmente, desde
o dedo do pé até os fios de meu cabelo , mais crespo de horror. Não hesitei e meti um pontapé
na mão do médico. Minha mãe ficou mortificada por minha gentileza precoce:”Minha filha!", A decepção de minha
mãe comigo, fez que lágrimas quentes viessem aos meus olhos. Agora chorava
abertamente, misto de tristeza e de medo. Aquietei chorando e chorando aguentei
a terrível picada NA PERNA! Desta experiência ficaram as cicatrizes na perna
esquerda, dois olhos de pele transparente, onde talvez esteja refletido o
pontapé na mão do médico. Nilce, Nilce, desta vez você não me salvou.
Lembro-me muito bem, uma tarde fomos Nilce, Norma e eu à
matinée do Cine Bauru. Eu era ainda uma criança, a Norma talvez uma
pré-adolescente, mas a Nilce já era uma moça de fazer torcer pescoços na rua.
Tinha um corpo só comparável ao da mais bem paga top model, com a vantagem de nem precisar de silicone, para correções da natureza. Tinha tudo certinho, sem
excesso, nada sobrando ou faltando. Nada demais ou de menos, Tudo na medida
certa. Umas pernas morenas, fortes, um
corpo magro, cheio de curvas, realçado pelo vestido de jérsei. Alta, soberana,
porte de rainha. Parecia que eu estava vivendo um dos filmes a que assistíamos
sempre. Só que a protagonista ERA MINHA IRMÃ! Nossa! Ela era um estouro! Eu era
muito nova, mas lembro-me bem do orgulho que me invadiu, vendo aquelas caras de
vizinhos e transeuntes, completamente abobalhados por seu porte altivo,
elegante, sobranceiro e perigoso.
Linda, sim, classuda, mas, ah, vá mexer com ela, vá!.
Aqueles olhos grandes, castanhos, cabelos pretos, lisos, era uma figura de
sonho inatingível. Ela era difícil pra caramba. Quando, na época, se falava em
moça difícil, podia-se pensar nela. Era o protótipo. Ah, houve uma vez, em Piratininga, fomos
convidados para uma festa. Meus pais eram amigos de todos e nos levaram,
lógico. Não tinha esta coisa de ir a festas sem os filhos. Até eu, que era tão
pequena, fui. No meio da festa, começou um bailinho. E um tal rapaz tirou Nilce
pra dançar. Não sei de que jeito foi que ele pediu uma contradança, só sei que
SPLASH! Só se ouviu o barulho da bofetada que a Nilce deu nele! Na hora foi
meio chato; todo mundo ficou paralisado, olhos arregalados, estarrecidos,
estupefactos, (com c mudo mesmo para dar o impacto do momento.) Meus pais queriam
saber o porquê do tabefe. Não sei explicar também. Nilce talvez pensasse que
ele fosse casado e tinha tido a ousadia de tirá-la para dançar? (Merecia mais um
sopapo.) Ou, bichinho do mato, achou-o violentamente feio e atrevido e
sapecou-lhe o bofetão? Ou ele tinha cara de velho e foi olhar justamente pra
ela, que estava destinada a encontrar logo seu príncipe encantado? (E seu
príncipe não tinha nada a ver com aquele cara de babão. Bolacha nele!) Ou,
dançando com ela, quis apertar-lhe o corpo formoso e virginal? ( Oh, já estou
ficando com raiva dele. Também minha mão coça com vontade de lhe dar um tapão.)
Pois era assim a Nilce. Até que...
Houve um baile no Tênis Clube ...