terça-feira, 28 de abril de 2015

37 - Meu primeiro soutien



38 - MEU PRIMEIRO SOUTIEN

    

       



          Lembrando a Arminda: foi ela quem fez nossos primeiros soutiens. Até o colegial, Norma e eu usamos estas lingeries artesanais. Lembro-me bem, quando saí com a Mari, minha amiga e colega do Curso Clássico, e a acompanhei em suas compras. Qual não foi meu espanto quando a vi comprar um  soutien pronto, da marca De Millus,  sem sequer experimentá-lo.

        Ó glória! Ó libertação! A liberdade não é azul, nem vermelha. A liberdade é comprar um soutien na loja, sem precisar de prova. Foi magnífica a minha saída com Mari. A descoberta do soutien pronto! A descoberta da beleza! A descoberta da liberdade! E nem contei a ela o meu assombro, naquela tarde, na Rua Batista de Carvalho.  

        É lógico que, a partir daí, adquirindo as peças da famosa marca, Norma e eu começamos a nos achar mais bonitas, encantadoras e atraentes. Duas Vênus! As peças da Arminda, apesar de muito femininas, com lési, bordado inglês, fitinhas, sempre marcavam muito as roupas, principalmente as blusas de ban-lon, que tínhamos, com o maior orgulho. (Conjuntos de ban-lon, de cores lindas e variadas, eram peças twinn, se assim as podemos definir: uma blusa de malha fina de lã, de mangas curtas, por baixo, decote careca e, por cima, da mesma cor, da mesma malha, do mesmo decote careca,um casaquinho abotoado, de mangas longas. Bem bonitinhos!

       Nós também nos sentíamos o máximo com as novas lingéries. Vênus de Millus.

53 - Idas e vindas do amor II


53 - Idas e vindas do amor II

       Em junho, dia 21,1969, ficamos noivos. Nosso namoro era assim: durante a semana, ele trabalhava em São Paulo e eu em Iacanga. Na sexta-feira, à noite, Osvaldo chegava, tarde da noite. Era só o tempo de ficar conversando e rindo na varanda. 
       No sábado, ficávamos juntos, íamos ao cinema. Aos domingos, almoço em casa e despedida. Ele voltava pra capital. Depois do noivado, nossas conversas também abordavam nosso futuro. Ele marcou setembro para nos casarmos. Setembro chegou e foi embora e nada de conversas mais consistentes. Tudo bem. Eu sabia que ele e seus amigos passavam um momento crítico na firma e a coisa estava mais como uma revolução. Não era hora mesmo de assumir compromisso. Assim, mais ou menos, marcamos pro fim do ano. Pois é: o fim do ano acabou e nada mesmo. Uma certa desilusão ia-se apoderando de mim. Não achava nada agradável essa indefinição. E, assim, antes de completarmos um ano de noivado, dei meu basta, sem nem explicar a razão. Assim, ninguém ficou sabendo as causas do rompimento.
       Como nunca quis explicar os motivos, cada um ia imaginando uma coisa diferente. Façam ideia na minha casa, com tantos irmãos, todos amigos e admiradores do Osvaldo, como a coisa ferveu. E na casa dele não era diferente. As causas do fim de nosso noivado eram imaginadas na maior criatividade.
      Seis anos se passaram, nós sem nem sequer nos depararmos um com o outro, era janeiro de 1976. Estávamos meus pais e eu em Campinas, onde minha mãe seria operada de catarata. 
      Nesse meio tempo, Osvaldo saíra com muitas mulheres, foi assediado por tantas garotas e se manteve solteiro. Por minha vez, também namorara um cabeça dura,  e troquei ideias com outros mais. Mas sei lá: nunca me sentia feliz como o fora com Osvaldo.
      Aí, nesse janeiro de 1976, Norma, fazendo a vez de Cupida, ligou paro o Osvaldo e avisou que estávamos em Campinas: que minha mãe, que ele sempre amara, iria ser operada. Depois do choque desse telefonema, que acordou os fantasmas do passado, Osvaldo se comprometeu a nos visitar no Instituto de Olhos Penido Burnier.
       Quando fiquei sabendo das artes da Norma, e que ele viria visitar minha mãe, meu coração pulou de alegria e temor. Não poderia imaginar como é que nos encararíamos, depois daquele noivado desfeito.
        Para conquistar pontos com ele, fui ao mercado comprar frutas, pois sabia que esse era seu alimento favorito.
       Às seis horas mais ou menos, ele chegou. Foi tudo tão normal, como se não tivesse havido esse vácuo de seis anos entre nós. Servi as frutas. Meus pais dormiam. Nós, na salinha ao lado,( o quarto dispunha de uma salinha) conversávamos e ríamos sem parar. Era noite alta e ainda nossos risos incontroláveis poderiam destoar do clima de um hospital. Despediu-se e ficou de voltar na quinta feira.
       Na quarta feira me ligou, dizendo que não iria me ver mais. Que não era criança pra voltar e depois acontecer o desfecho incompreensível. E enquanto ele falava, desenhava num papel. O quê? Um burro. Era assim que ele se sentia só de pensar em voltar a me namorar. Ele guardou o desenho que hoje é guardado por mim.
Desliguei o telefone, num sentimento de impotência. Se era para isso, por que ficáramos tão bem aquela noite? Sem poder ocultar, narrei aos meus pais. Incrivelmente, meu pai me disse:
       -- Se ele não vem, vá você.
       Fiquei atarantada com o conselho, pai incrível o meu! Mas imediatamente achei que era isso que eu queria. Se não era pra voltarmos, paciência, mas eu deveria falar cara a cara com ele.
       Liguei pra ele e avisei. 
       -- Vou pra SP falar com você. Pode me esperar na rodoviária?
       E ele, surpreendentemente:
       -- Eu irei aí na quinta feira.
       A quinta feira chegou e com ela, à noite,  o Osvaldo. Conversamos seriamente e ... nem voltamos, nem terminamos. Quase voltamos. Pelo menos achei que sim, mas não seria tão fácil, como minha simplória filosofia pudesse imaginar.

52 - Idas e vindas do amor I



52 - Idas e vindas do amor I

       Os anos se passaram, terminei a faculdade, continuei a sonhar com o Osvaldo. Sonhei tanto que me apareceu um sósia dele. Namorei durante alguns meses, e ele me esperava na esquina da Gustavo Maciel, embaixo do poste. O Sr Sebastião sempre achou que fosse o Osvaldo. Era parecido não só no físico, como na formação moral. Admirável, também. Eu tinha vinte e dois anos e namorei uns seis meses, sem que trocássemos um beijo sequer. Foi lindo! O desejo de um beijo que não aconteceu haveria de nos acompanhar por muito tempo.  Por que isso? Eu não quis! E por que não quis? Sei lá! Acho que não sabia namorar, não sabia me soltar..
       Era véspera de Natal. 1968. Norma namorava o Said na varanda. Horas antes, eu estivera na varanda, sozinha, e um paquera ficou passando e passando em frente de minha casa, até que parou na esquina. Achei um desaforo. Quem ele pensava que eu fosse, pra parar na esquina? Por acaso pensara que eu iria até lá pra sair com ele? Vã ilusão. Entrei na minha casa, fui pra copa, peguei meu som, que era rádio e toca discos, e fiquei ouvindo a maravilhosa música de Simonal, no disco Alegria, Alegria. Estava eu assim muito bem resolvida e entretida, quando a Norma chegou correndo:
       -- Sônia, o Osvaldo está aí. 
       Levantei-me de um salto e corri a recebê-lo. 
       A varanda ficava a meia luz, recebi-o no alto da escada e até hoje sinto o brilho de seus olhos encontrando-se comigo. Trouxe-me um presente, um perfume fino, Femme, comprado na Mesbla, grande magazine de São Paulo, cidade onde trabalhava, há anos, trouxe-me também sachés perfumados para as gavetas. Para o meu pai, trouxe uma garrafa de vinho. Para minha mãe, um rosário de madeira da Bahia.
       Passou a ceia conosco. 
       A comemoração do Natal , em casa, sempre foi muito simples, e é assim que eu gosto até hoje. Frutas secas, frutas naturais, muita uva, bebidas, castanhas cozidas na hora e sanduíches de presunto e queijo.
       Ficamos à mesa conversando e rindo. Até rolou papo sobre lua de mel em Paris. Por qualquer motivo,  eram risos sobre risos. Alegria, reencontro. Mas não seria pra sempre não. Ainda o destino nos pregaria peças.

51 - Osvaldo


51 - Osvaldo


       Desde o primeiro ano da faculdade, acalentei uma paixão secreta: Osvaldo. Era ele o contador da firma de meus irmãos. Alto, loiro, forte, olhos azuis, voz doce e máscula. Nosso flerte era todo de esquivanças, de  olhares que gritavam, enquanto as bocas se calavam, hermeticamente. Volta e meia o telefone, extensão do da firma ( ah, era o contrário)  tocava, eu corria para atender, na esperança de ouvi-lo. E era.Era ele. Percebia a delicadeza da voz quando ouvia a minha. Uma voz que sorria, uma voz um tanto tímida, embaraçada. Aquele flerte gostoso, que me fazia sonhar, eram meus pensamentos dia e noite.
       Havia um trabalho a fazer em Literatura Portuguesa. Sobre Os Lusíadas. Naquele tempo, era necessário datilografá-lo nas máquinas de escrever (Remington, as mais comuns). E eu não aprendera a datilografar: havia um cem número de coisas  pra que saísse uma página bem feita. Pedi aos irmãos, particularmente ao Nassib, que alguém da firma pudesse datilografar meu trabalho. Bem no fundo, queria , ardia que fosse ele. Sim, quem mais sabia datilografar era ele, o loiro lindo, de estatura dionisíaca, de olhos de anjo.
       Combinamos um dia pra isso. E lá apareceu na Cussi Júnior o homem que seria, vinte e um anos mais tarde, meu marido. Depois dos cumprimentos, cheios de subliminares, comecei a ditar  as páginas. Ele ia datilografando e, nas pausas, pausando seu olhar no meu. Ai! No meio da tarefa, não resisti:
       -- Você tem namorada?
       -- Não! --Respondeu prontamente.
       O trabalho era sobre mitologia nOs Lusíadas. Lógico: sucesso absoluto.
       Passaram-se os dias.
       Uma noite, Norma e eu descemos a Gustavo Maciel, pra irmos ao cinema. Era noite de quermesse. Quando íamos atravessar a Avenida Rodrigues Alves, vi, pelo meio da avenida, que estava interditada aos carros, um casal dirigindo-se à quermesse, que era ali, em frente à Igreja Matriz. Meu coração deu um pulo. Era ele, com o braço direito envolvendo a cintura de uma moça odiosa. O que me fascinou, revoltou, hipnotizou foi a mão dele na cintura dela.
       Não, ele não tinha namorada. Tinha noiva!
       No escurinho do cinema, fiquei chorando.

domingo, 26 de abril de 2015

61 - Filha

61 - Filha, 

     O dia mais completo de minha vida foi o dia em que Karen nasceu. 
     Era uma quinta feira, 21.45h.
     Apressadinha, teve que deixar sua primeira morada um mês antes do previsto.
     O medico pediatra ma trouxe, com olhos brilhando de alegria. Beijei seu pezinho, coisinha mais doce, agradecida a Deus, ao Salim, aos médicos professores, que, chamados na emergência e durante greve dos residentes, se dispuseram a integrar a equipe do colega Salim. E o pediatra - fazia mais de dez anos que não dava plantão - com aquele docinho ao colo, estava eufórico por constatar como o bebê estava bem. minha filha vivera um momento de perigo e de grave perigo! Uma característica bem dela: saber livrar-se das emboscadas e - assim eu presumo - acabar brincando com o cordão umbelical que poderia sufocá-la.  Por isso a euforia da equipe de professores da Paulista, liderados pelo médico genial,  Salim Wheba. 
     Karen chegou, toda cor de rosa e alcançando logo a nota dez, no teste de reações aos estímulos. 
     Quel début!! Foi tudo tão bom,  tão lindo! Você, Osvaldo, tornou-se o assistente do médico neonatologista. Ia, com ele, visitar os outros pacientes. Lembro-me que um casal estava seriamente preocupado com a saúde do bebê. Lembra-se disso, querido? E , na primeira noite, você dormiu no sofá do quarto. Só que nas demais, até o dia 1o de maio, com minha mãe nos paparicando, você dormiu numa poltrona, nada macia. E, finalmente, voltamos para casa, em Jacareí.era dia 1o. de Maio
     E a cada dia, a cada fase da Karen, mais linda e completa ficou nossa vida. 
     O amor e o humor enfeitaram  e basearam nossa  pequena família. 
     Obrigada, Osvaldo, Reencontro  você em nossa filha, em seu comportamento inteligente e sensato, na criação de expedientes que facilitam o dia a dia, no amor à família, na serenidade diante de problemas, no amor e interesse pelas viagens e novidades, na originalidade e criatividade de suas atitudes. Você e ela, tão parecidos!  Exatamente como pedi a Deus, durante a gravidez.
.     A vida segue com sua trajetória nem sempre rósea.
      Karen enfrentou problemas maiores que ela e enfrentou-os, às vezes com lágrimas, o mais das vezes com resoluções bombásticas e intempestivas. 
     Pouco a pouco, foi, num crescendo, emancipando-se  de seus monstros perseguidores.
      Ela é inteligente, objetiva, racional, linda, deliciosa, adorável,intempestiva, surpreendente. Graças a Deus! Nunca saberei sobre ela o suficiente. Ela é um mundo de pensamentos, de aptidões, de interesses. Poderia chamá-la filósofa. Osvaldo, se você visse a quais programas ela assiste, você ficaria espantado. É uma mente que pensa! Como pensa! Eu sou uma simplória perto dela. Minha cabecinha só enxerga o superficial, sem análise. Bem diferente dela.
     O papel de filha como a Karen é ensinar uma mãe como eu. Pois ela tem paciência. Enquanto a maior parte das minhas contemporâneas nem chega perto de computador, ela me ensinou os macetes que podem me divertir ou auxiliar. Uso o computador, manejo meu celular, emprego meu I Pad, leio livros no Kindle, tiro fotos com o celular, escaneio, uso o whatsApp, com uma destreza que causa surpresa, faço meu blog, assisto a séries inteligentes, em tudo recorro a pesquisas no Google, assisto a  filmes maravilhosos (que, por preconceito refugava),  tudo, tudo, porque ela quer que eu me insira na tecnologia e não fique fora desse nosso tempo. Eu, que nunca consegui dar uma aula a ela, sou sua aluna, espero que aplicada.
     Causa um certo  orgulho no coração ver como ela se liga a você. No dia a dia, tenta ser melhor para ser como você. Mas aquele ciúme de quem estava ao seu lado continua. Ouça o que ela escreveu, ao ser alfinetada por alguém que o admirava:"
     "Ele é meu em todas as vidas"
      Quando está numa encruzilhada, Karen sempre se pergunta como você reagiria nessa situação. A partir daí, sela sua atitude. 
     Como você, Osvaldo, nossa filha sempre pensa em que um fato tem dois lados. Isso é muito sensato.Aprendo muito com ela.
     A Karen encontrou seu caminho para a força e a superação. Você, meu querido, lá do alto, sabe dos sacrifícios que a vida lhe impôs e como a amada filha os superou. E não poderia ser de outro modo: Karen herdou de você essa força obstinada de querer ser do bem, do belo, do certo. 
     Formou-se em Marketing  e se opõe à falsidade de seus métodos. No mesmo ano em que concluía seus estudos na ESPM, concluiu também o Curso de Fotografia, na Escola Panamericana de Arte. E aí, sim, seus olhos brilham de amor à arte.Nós estivemos na Panamericana e vimos como as fotos da Karen foram destacados.


   (Minha menina ( para mim sempre menina) de ouro,( sempre preciosa), me aguente e me perdoe as lerdezas.
Vida feliz e realizada,  minha Karen!)
     Além do além, viverá meu amor por vocês.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

50 - Andanças



50 - Andanças

       Depois de Marília e do Morais Pacheco, professora contratada, minha vida foi a de uma andarilha. Trabalhei em Agudos, Pirajuí, Presidente Alves, Bauru, Piratininga e, finalmente aportei, como professora efetiva, em Iacanga, por um ano e meio, para chegar a Bauru, novamente Morais Pacheco.
      Em todos os lugares em que lecionei, fui-me encontrando e encontrando  pessoas maravilhosas, que fincaram bandeira em minha vida. Aquela timidez, que me impedia de ser eu mesma, foi logo sendo sufocada pela responsabilidade de ensinar.  Com a prática, a naturalidade e simplicidade foram ganhando terreno em minha personalidade. A sala de aula me inspirava. Desde o começo, sentia-me no meu ambiente. Aquelas lousas eram minha moldura. Acho que eram as marcas da Irmã Arminda. E, nem sei como, fui me exteriorizando, a ponto de rir com alunos, fazer um pouco de teatro, declamar poesias, improvisar textos engraçados, enfim, eu fui me tornando eu mesma. No início com sacrifícios da alma e do pudor. Lembro-me de um aluno do colegial que ficou encarando meu busto. Aquilo me deu uma raiva tão grande, que, encarando-o de volta, passei-lhe o maior sermão, reduzi-o a um fragmento de gente. Sim, a ira que se apossou de mim sempre voltaria por outros motivos: paciência estourada pela indisciplina, cola, desrespeito. É espantoso notar que nesses arroubos irados, meu vocabulário era estelar, por isso mesmo deixava o infrator completamente derrotado. Só Deus explica!
       Ia para Iacanga todas as manhãs, saindo às seis horas de casa. Em geral, dava carona para alguns colegas. Mas, às vezes, ia sozinha, pois os amigos amiúde faltavam. 
       Eu com o Gordini, cor de chocolate, cor do amor, segundo meu cunhado Jorge, sozinhos na estrada, manhãs maravilhosas, caminho  sossegado, com pouco movimento, aqui e ali despontando uns bosques com árvores. E, num ponto x da estrada, do lado esquerdo, alguns quilômetros antes de Iacanga, uma árvore majestosa, pela qual me apaixonei. Conceição, uma querida aluna, apelidou-a de árvore de Dona Sônia. Aceitei e incorporei-a aos meus mais queridos bens. Acredito que minha paixão por árvores tenha nascido pelas mãos de minha mãe, que as plantava com tanto amor, que em um ano alcançavam altura majestosa.
      O Gordini era cor de chocolate, cor de amor, como definiu meu cunhado saudoso Jorge. Parecia que tinha sentimento. Nunca me deixou na estrada, nunca aconteceu que um pneu furasse no trajeto. Não! Ele arreava no pátio da escola, mostrando a todos porque um de seus pés estava ferido. Aí era incrível. Um dos alunos me procurava em alguma sala, pedia a chave do Gordini, que eu lhe atirava e, uma equipe eficiente não só trocava o pneu, como também se incumbia de mandar consertar o estragado. Quando voltasse pra Bauru, o carro já estaria ok, com o estepe no lugar. Foram anjos em minha vida. Nunca os esquecerei, nem nossas sessões artísticas que movimentavam a escola.
       Encontrei nas classes de Iacanga almas sequiosas por aprender. O clima entre nós era de trabalho fértil, de respeito e amizade. Não me lembro de nenhuma vez em que se queixassem do tamanho dos exercícios para fazer em casa. Nem de que se queixassem de que não entendiam alguma coisa. Ou das leituras extraclasse. E, acabado o período matutino, os alunos voltavam aos seus lares. Mas ... ó surpresa! Depois do almoço, lá estavam eles de novo na escola, como se fosse o segundo lar. 
       Houve um ano em que a escola promoveu uma feira de Ciências, prestigiadíssima pelos iacanguenses. O professor de Artes era muito habilidoso e os alunos, sob sua batuta, inventaram os mais eficientes aparelhos eletrônicos, sobre os temas estudados. Os jogos inventados para avaliar ortografia, sintaxe, conjugação verbal foram um sucesso. Além do que aproveitavam as letras de músicas e poemas pra enfeitar os quadros negros. Ah, e havia, na nossa sala,  fundo musical, com aparelhos e discos que os alunos escolhiam e traziam. A Sala de Português foi das mais visitadas, porque as pessoas se sentiam instigadas a responder aos testes e saber a quantas andava seu estudo de língua pátria.
       Quando houve o Concurso de Remoção, não titubeei. Inscrevi-me, apesar de estar ligada aos meus alunos por laços de amor, respeito e de amizade, que nunca se desfariam.
       Para terem ideia de como eram meus alunos, narro o que vai a seguir: fui nomeada diretora, por motivos muito tristes. Nosso diretor falecera num acidente em Arealva. Como era a única professora efetiva, tive que assumir a diretoria. 
       Foi contratada uma professora substituta para assumir minhas aulas. Numa manhã, em que eu estava às voltas com a papelada administrativa, uma equipe de alunos veio me procurar. Vinham  reclamar da substituta, porque ela não dava aulas e, sim, ficava lendo. Pois era assim meu aluno: ávido por saber.
       Voltando ao Gordini, ele tinha uma neura. À tarde, quando voltávamos pra Bauru, o infeliz se insurgia contra o destino. Aquele ponteirinho que indicava a temperatura da água começava a delirar e a aproximar-se perigosamente do limite em vermelho. Oh! Quantas vezes tive que parar no acostamento para que ele recobrasse a calma. Mas quê! Era só rodar um pouco, que aquela  seta doidivanas se dirigia ao perigo. De repente, não mais que de repente, apareciam no horizonte, os  brancos dos edifícios de Bauru. Milagrosamente, o ponteirinho sofria um baque violento e caía pro normal! Isso todas as tardes, enquanto tive o Gordini.
Entender como?
     Uma coisa deliciosa acontecia nas viagens. Tinha,no carro, meu Blaumpunct ponto verde, um autorrádio incrível. Havia uma emissora que só transmitia músicas e horário. E todos os dias eu ouvia, num feitiço, a voz maravilhosa de Milton, cantando Travessia. Sim! Todos os dias! O produtor do programa gostava tanto da música quanto eu. Eu sentia que aquilo era um sinal de que tudo estava bem, tudo estava no seu lugar.
        Dedico o post aos meus ex-alunos de Iacanga, com quem trabalhei com tanto prazer. E aos meus pais, que esperavam meu retorno do trabalho.
       Ficou a marca sonora no coração.

       Em casa, meus pais esperavam, ansiosos, na sala, por mim. Depois do banho renovador, corria pra junto deles e assistíamos  juntos à novela A Escrava Isaura. Ai, momentos do paraíso! 
        Eu atravessava esses tempos, que não foram de pedra, com essa beleza e essa paz no coração.

terça-feira, 7 de abril de 2015

49 - Meu primeiro salário


49 - Meu primeiro salário




         Enfim, estava lecionando em Marília, e o primeiro mês já se passara. Com o início do segundo mês, vieram as folhas de pagamento e meu salário. Emoção. Como bom professor, nem sabia, como até hoje não sei, o valor da aula paga pelo Estado. Eram aulas de manhã, à tarde e à noite. Ainda pegava umas aulas particulares à tarde, em momentos livres, o que engrossava meus ganhos.
        De posse daquele dinheiro todo, uma lufada de bem estar me abraçou. Sabia que as coisas em casa ainda estavam difíceis. Há muito tempo, Norma e eu não comprávamos uma peça sequer. Era o momento de sorrir e sentir um vento de bonança nos afagar. 
        Fui a uma loja e comprei   conjuntos de ban lon: um amarelo para Norma, cor que sempre a favoreceu e a fez brilhar, um branco para minha mãe, que ela poderia combinar com qualquer tailleur, e dois  para mim: um azul claro e um coral, pra me apresentar bem aos alunos.
         E paro meu pai? O que poderia lhe comprar? Era muito mais difícil. 
         Passando por uma tabacaria, dei com uma caixa de charutos cubanos. Nem pensei segunda vez. 
         Sabe o quê? Acertei tudo, na mosca! 



48 - Marília


      48 - Marília


           Logo que me formei, havia um grande desajuste em casa. Aqueles anos de fartura e de cabeça fresca se evaporaram. A situação havia mudado. 
                De posse de meu diploma de professora de Letras, não perdi tempo e fui lecionar em Marília. Fiquei hospedada na casa de uma patrícia, Dona Lulo, graças às relações de amizade de meu pai.
        Eram poucas aulas no Instituto de Educação Monsenhor Bicudo. E eram aulas de latim, para o clássico! O diretor ficou com medo de que eu desistisse por serem apenas doze aulas, o que seria insuficiente pra me manter. Nem sei como, na mesma hora, na sala dessa diretoria, apareceu a diretora de uma escola particular, que, simplesmente, me fisgou para ministrar aulas de Português e Francês, para o Ginásio e Colegial. Sim, lecionaria tudo para todos!
          Assim, estava assegurada minha sobrevivência.
   
          Mas ... recém formada lecionando Português, Latim e Francês, para Ginásio, Científico e Clássico? Batismo de fogo. E fogo de artilharia! Sim, fui boa aluna, mas nunca fui gênio. Resultado: ficava preparando aulas até depois da meia noite e acordava cedo para trabalhar. Não foi fácil.
         O bom da história é que me saí relativamente bem, e, ao final do ano, fui escolhida para paraninfa de duas classes de terceiro ano. 
         
        A casa de Dona Lulo ficava bem em frente ao cinema da Sampaio Vidal. Era um lugar ótimo pra mim. As duas escolas ficavam a uma distância que eu poderia vencer a pé, tranquilamente.
        À tardezinha, depois das cinco horas,  ouvia, lá no quarto, vindo da rua, um assobio forte e muito harmonioso, com as músicas de então. Era um sinal. Corria pra varanda e um lindo e exuberante moreno, olhos faiscantes, castanhos, cabelo liso preto,  me devorava com os olhos, num flerte inesquecível. Nunca fui de muito namorar, mas flertar sempre foi muito poético e virei expert no assunto. E não é que esse lindão foi estudar Direito, mais tarde, em Bauru?  Mas nossos destinos nunca mais se cruzaram. Sem dor ou dramas. Foi bonito enquanto durou e só. 
        Não sei que água eu bebia ali. Mas houve efeitos avassaladores no meu visual e em minha autoestima. 
       No meu visual: minha pele ficou um horror! Eu, que era,  reconhecidamente, possuidora de uma pele perfeita de pêssego ou de outras frutas aveludadas, de repente, fiquei com o rosto tomado de espinhas nojentas. Ficou, para seguir o estilo frutífero, como um figo-da-ìndia. Toda a pele do rosto! O casamento do Labib era em setembro e eu nem sabia como iria com aquele inferno no rosto. Aí apareceu a salvação: foi a primeira vez que usei uma base.
        Quanto à exacerbação da minha autoestima, explico-me: na minha vida inocente em Bauru, nunca tivera grandes interessados em me namorar. Mas em Marília, acho que mamãe resolveu passar mel em mim. Nunca vi tanta gente querendo me namorar. Mas saí incólume. Não porque não me interessasse por algum deles, mas pela sorte de ter tanta gente caindo de amores, à minha frente, tive que pagar o ônus: os interessados sempre se colidiam. Daí hostilidade, beligerância entre os machões e a dama fugindo de mansinho. E isso só no flerte, ainda bem que nem cheguei a namorar.
         No final do ano, voltei a Bauru e consegui aulas, no Morais Pacheco, depois de uma ex-colega da Faculdade quase me arrancar os cabelos, ( foi a primeira vez que vi as garras da ambição e do egoísmo, mas o diretor foi firme em me atribuir as aulas. Que diretor! Era o Dr Retz, meu fascinante ex-professor). Graças à inteligente administração, a escola granjeara o status de melhor escola de Bauru. Nesse ano em que fiquei em Marília, contraí duas dívidas eternas: 
         Primeiro: com minha senhoria, Dona Lulo, na casa de quem fiquei durante o ano todo. Sua casa era grande, de salas espaçosas, e de um silêncio mortal.
        Dona Lulo compensava a tristeza de seu lar com uma ternura maternal toda dedicada a mim. Como não tivera filhos, apegou-se a mim e me tratou com um carinho amável, sereno, dedicado. Fazia comidas deliciosas para me agradar. Seus grandes olhos azuis me seguiam pela casa, com um amor que só vi nos olhos de minha mãe. Ela me elegeu como filha. E eu aceitei e retribuí, reconhecidamente, esse amor.
        O marido de Dona Lulo era muito aborrecido. Quase não falava. Durante as refeições, mantinha-se silencioso e só abria a boca pra pedir alguma coisa. E sempre numa voz sem carinho, sem delicadeza. Meu coração sofria por ela. Aquele silêncio me matava. Principalmente, às seis horas, horário do jantar, antecipado, que eu lecionava também à noite. Aquele gigantesco silêncio me oprimia, me deprimia. Lembrava de minha casa, à mesa, as conversas, os papos, as risadas. Nessa hora, o telefone tocava. Era minha mãe. Aí era só falar uma palavra e cair na choradeira. Dona Lulo me consolava. Acalmava-me. E o marido, aquela múmia! Eu achava que ela deveria ter-se casado com uma pessoa melhor. E ela era linda! Uma senhora linda! E honesta! Quando um transeunte, passando em frente à sua casa, a viu, não resistiu e a chamou de bela mulher. Dona Lulo tomou a vassoura e o ameaçou, pela falta de respeito! Ah, que tempos! Que mulheres!
    
         Ainda vi Dona Lulo umas três vezes. Uma, que ela foi a nossa casa almoçar, com seus familiares. A segunda vez, Osvaldo e eu, noivos, fomos à sua casa (ela se mudara da Sampaio Vidal) e passamos a tarde com ela. Seu Amélio já partira para o destino final. E a terceira vez foi quando ela me visitou em São Paulo. Veio com Vitória, prima de meu pai. Mundo pequeno!
         Saudade, amor e reconhecimento, Dona Lulo. Que maravilha eu tê-la encontrado. Como Deus me ama!

        A segunda pessoa a que sempre serei devedora é minha prima Lili. Linda, rosto maravilhoso, de traços finos, olhos castanhos esverdeados, voz de mel,  boca bem feita, de lábios carnudos e sensuais, toda feminina, toda amor.
        Moravam ela, o marido e os filhos bem em frente à escola particular em que eu trabalhava: Escola Ninie Póvoas. A Lili deixava a empregada de guarda na frente da casa, para me chamar, quando eu saísse da escola. E sabem para quê? Para eu tomar café, comer um lanche da tarde em sua casa. Que prima  mais doce! E conversávamos muito. Lili era sensível ao belo, à arte, à poesia. Conhecendo-a um pouco, comprei duas Antologias da Poesia Universal, uma pra ela e outra pra mim. Dois livros que uniam duas primas, duas amigas, duas irmãs. Que pessoa linda!
        A sogra da Lili era aquela que, na juventude, fora noiva de meu pai. Uma noite, Lili me convidou pra assistirmos a um concerto de piano. E a sogra dela também foi. Ela me olhava séria, observadora, com olhos profundos e pensativos. Ah, sei bem o que ela sentia. meu pai me contara toda a história. Foi um tanto opressiva essa noite e esse encontro.
        Lili, lembro-me dela me oferecendo um pãozinho, fazendo-o estalar, pra me dar vontade. E, linda, bem arrumada, exuberante, atraindo olhares de admiração, indo ao cinema comigo. Uma estrela! Obrigada por seu carinho. Com ele você conquistou para sempre meu amor.