Vizinhança da Cussi Júnior, 11-40, anos 40
O Príncipe das Crianças,
30 - TONINHO SAPATEIRO
( www.clicfolha.com.br/noticia/52694/os-sapateiros-e-sua-linguagem11 de dez de 2015 - “Sapataria era lugar de prosas e falações; forma de passar o tempo, enquanto as sovelas cortavam os couros e os martelos batiam )
30 - TONINHO SAPATEIRO
( www.clicfolha.com.br/noticia/52694/os-sapateiros-e-sua-linguagem11 de dez de 2015 - “Sapataria era lugar de prosas e falações; forma de passar o tempo, enquanto as sovelas cortavam os couros e os martelos batiam )
Toninho Sapateiro
É assim mesmo. Como se fosse seu sobrenome. Ao invés de
Toninho Alves, ou Silva, Toninho Sapateiro.
Havia uma sapataria vizinha à nossa casa. Funcionava na
garagem da casa do Sr. Sebastião. O sapateiro chamava-se Toninho, era moço e as
crianças dedicavam-lhe muito afeto e confiança. Eu, eu mesma, muitas vezes,
ficava sentadinha, num tamborete, a sua frente, observando-o em seu mister. Batendo solas,
trocando saltos, engraxando, tirando pregos. (Sim, às vezes, a sola se
desprendia e um prego ficava a atenazar o pé.)
Quando eu ia à sapataria-
note-se: eu era um bichinho tímido e desconfiado, mas tinha coragem de sair
sozinha de casa e ficar bons minutos ao lado de Toninho, tal a bondade que ele
demonstrava às crianças - toda vez que me dirigia pra lá, corria até à lata de
bolachas, enchia as mãos delas e levava-as ao meu amigo sapateiro. Não me
lembro de lhe ter falado alguma coisa, mas, seguramente, enquanto trabalhava,
ele ouvia o relato da criançada ao seu redor (sempre havia, pelo menos,
três crianças ali) e aparteava, com voz risonha, doce e calma, num tom
baixo, humilde como sua profissão.
Nunca o vimos triste, nem nervoso. Sempre um
sorrisinho nos lábios. Sempre amigo,
sempre o Toninho Sapateiro, amigo das crianças. Também nunca o vimos longe de
sua banqueta de oficina. Às vezes, quando terminava um trabalho, levantava-se-
era alto e esguio – e, imediatamente, já pegava, nas prateleiras, no alto das
paredes, outro calçado para consertar. Linda figura!
Certa feita, havia
pedreiros fazendo uma pequena reforma na oficina. Eu morria de dó dos pedreiros
mal vestidos e sujos de tinta. E minhas mãos iam mais carregadas de bolachas
que nunca. Eles me olhavam, com surpresa, mas comiam as bolachas Maria ou
Maisena, que eram as prediletas em minha casa.Meu pai as comprava em latas grandes.
Quando terminava o contrato do aluguel da garagem, as crianças torciam pra que o Sr. Sebastião o renovasse só com o Toninho Sapateiro. E assim se passaram alguns anos.
Num dia estranho, a sapataria amanheceu fechada. A filha do
Sr. Sebastião, Nini, contou-nos, quase em cochichos, que Toninho se suicidara.
Até hoje, sinto um
aperto no coração, ao lembrar-me dele. O que poderia ter acontecido a ele, que
era calmo, bem humorado, para chegar a este gesto extremo? O que lhe faltou, a
ele, que tanto nos dava de bem-estar e tranquilidade? Por que ninguém nunca mais
tocou no nome dele? Por que ninguém
explicou este desenlace imprevisto e impensável? Como se ele fosse uma bolha de
sabão que sumisse no ar. Quero saber, quero
saber quem magoou tanto este moço tão bom, de coração criança. Como foi
que os adultos o feriram tão gravemente e o apagaram da memória, tão rápida e
fulminantemente.
Toninho, eu não o esqueci, e muitos, entre nós, crianças,
também devem tê-lo guardado na memória. Você ficou em minha vida como um
exemplo. Confiava em você e você nunca me decepcionou, nem a nenhum de nós,
seus amigos mirins. Talvez venha de você este meu jeito de confiar sempre nos
outros. Aprendi com você, meu primeiro amigo adulto. Você nos recebia em sua
sapataria como se fôssemos seus sócios. Nunca repreendeu nenhum que ali
estivesse. E ninguém, diga-se de passagem, extrapolava nas brincadeiras. Com
você, deixava minha timidez de lado, abandonava a idéia de mim mesma como uma
garotinha tímida e introvertida, corria à sua oficina, aboletava-me em
uma banqueta e ficava apreciando o espetáculo de seu trabalho paciente
e belo, olhando seu rosto jovem, comprido e fino, em meio-sorriso, centrado em
um calçado. Deus lhe faça justiça e lhe reserve um local nobre, como sua alma,
rodeado do afeto, que lhe transbordava nos olhos, nos gestos, na voz.