sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

30 - Toninho Sapateiro

Vizinhança da Cussi Júnior, 11-40, anos 40


O Príncipe das Crianças, 

30 - TONINHO SAPATEIRO
     ( www.clicfolha.com.br/noticia/52694/os-sapateiros-e-sua-linguagem11 de dez de 2015 - Sapataria era lugar de prosas e falações; forma de passar o tempo, enquanto as sovelas cortavam os couros e os martelos batiam )


                                       Toninho Sapateiro

     É assim mesmo. Como se fosse seu sobrenome. Ao invés de Toninho Alves, ou Silva, Toninho Sapateiro.

     Havia uma sapataria vizinha à nossa casa. Funcionava na garagem da casa do Sr. Sebastião. O sapateiro chamava-se Toninho, era moço e as crianças dedicavam-lhe muito afeto e confiança. Eu, eu mesma, muitas vezes, ficava sentadinha, num tamborete, a sua frente, observando-o em seu mister. Batendo solas, trocando saltos, engraxando, tirando pregos. (Sim, às vezes, a sola se desprendia e um prego ficava a atenazar o pé.)
      Quando eu ia à sapataria- note-se: eu era um bichinho tímido e desconfiado, mas tinha coragem de sair sozinha de casa e ficar bons minutos ao lado de Toninho, tal a bondade que ele demonstrava às crianças - toda vez que me dirigia pra lá, corria até à lata de bolachas, enchia as mãos delas e levava-as ao meu amigo sapateiro. Não me lembro de lhe ter falado alguma coisa, mas, seguramente, enquanto trabalhava, ele  ouvia o relato da criançada ao seu redor (sempre havia, pelo menos, três crianças ali) e aparteava, com voz risonha, doce e calma, num tom baixo, humilde como sua profissão. 
     Nunca o vimos triste, nem nervoso. Sempre um sorrisinho nos lábios.  Sempre amigo, sempre o Toninho Sapateiro, amigo das crianças. Também nunca o vimos longe de sua banqueta de oficina. Às vezes, quando terminava um trabalho, levantava-se- era alto e esguio – e, imediatamente, já pegava, nas prateleiras, no alto das paredes, outro calçado para consertar. Linda figura!
      Certa feita, havia pedreiros fazendo uma pequena reforma na oficina. Eu morria de dó dos pedreiros mal vestidos e sujos de tinta. E minhas mãos iam mais carregadas de bolachas que nunca. Eles me olhavam, com surpresa, mas comiam as bolachas Maria ou Maisena, que eram as prediletas em minha casa.Meu pai as comprava em latas grandes. 
     Quando terminava o contrato do aluguel da garagem, as crianças torciam pra que o  Sr. Sebastião o renovasse  só com o Toninho Sapateiro. E assim se passaram alguns anos.

     Num dia estranho, a sapataria amanheceu fechada. A filha do Sr. Sebastião, Nini, contou-nos, quase em cochichos, que Toninho se suicidara. 
     Até hoje, sinto um aperto no coração, ao lembrar-me dele. O que poderia ter acontecido a ele, que era calmo, bem humorado, para chegar a este gesto extremo? O que lhe faltou, a ele, que tanto nos dava de bem-estar e tranquilidade? Por que ninguém nunca mais tocou no nome dele? Por que  ninguém explicou este desenlace imprevisto e impensável? Como se ele fosse uma bolha de sabão que sumisse no ar. Quero saber, quero saber quem magoou tanto este moço tão bom, de coração criança. Como foi que os adultos  o feriram tão gravemente e o apagaram da memória, tão rápida e fulminantemente.

     Toninho, eu não o esqueci, e muitos, entre nós, crianças, também devem tê-lo guardado na memória. Você ficou em minha vida como um exemplo. Confiava em você e você nunca me decepcionou, nem a nenhum de nós, seus amigos mirins. Talvez venha de você este meu jeito de confiar sempre nos outros. Aprendi com você, meu primeiro amigo adulto. Você nos recebia em sua sapataria como se fôssemos seus sócios. Nunca repreendeu nenhum que ali estivesse. E ninguém, diga-se de passagem, extrapolava nas brincadeiras. Com você, deixava minha timidez de lado, abandonava a idéia de mim mesma como uma garotinha tímida e introvertida, corria à sua oficina, aboletava-me em uma banqueta e ficava apreciando o espetáculo de seu trabalho  paciente e belo, olhando seu rosto jovem, comprido e fino, em meio-sorriso, centrado em um calçado. Deus lhe faça justiça e lhe reserve um local nobre, como sua alma, rodeado do afeto, que lhe transbordava nos olhos, nos gestos, na voz.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

29 - Catucha




29 - Vizinhança da Cussi Júnior, 11-40, anos 40 e 50 

                         CATUCHA
( Katiushia)




     Catucha era a nossa vizinha, e  da idade da Norma. Estudava também no São José. Era filha do Dr Demétrio, um médico bem conceituado de Bauru.               
     Moravam num sobrado, do lado ímpar da rua, quase em frente a nossa casa. Catucha era desinibida, esperta, bonita. E forte. Não quero dizer gorda. Não, de jeito nenhum. Forte que eu digo: exuberante. Não era mignon como Norma e Micisa. Alta, ombros largos.
     Catucha jogava basquete no time da escola e saía-se muito bem.. Muitas vezes fomos assistir aos jogos do colégio, uma festa, com aquela cantoria gritada de doer:

" É canja,

é canja,

é canja de galinha,

arranja outro time

 pra jogar na nossa linha".

     A casa dela tinha um grande quintal e um porão. Certa vez fui até lá. Ela me mostrou o porão e nele vi muitos brinquedos, entre eles uma boneca. E havia, também, uma cadeirinha de criança, encantadora e irresistível aos meus olhos. Neste fugaz encontro, ela me contou, como se fosse um grande segredo, que quem tivesse em seu jardim a planta conhecida como colchão de noiva ( pra quem não conhece: flores minúsculas e vermelhas, multiespalhadas pelos galhos com espinhos grandes e largos - ) teria seus pais mortos em pouco tempo. Fiquei arrepiada, só de pensar. Eu tinha aquela planta no jardim de casa. Ai! Que perigo pairava sobre meu lar!
     Catucha, pacientemente, aconselhou-me: 
     -- Arranque-as.
     Mais que depressa, dirigimo-nos pra minha casa- era só atravessar a rua- e, furiosamente, ferindo minhas mãos com os espinhos, arranquei-as todas, não deixando sequer uma muda que fosse. Lógico, Catucha me ajudava. Missão cumprida! Por este motivo, meus pais não morreriam. Catucha encarregou-se de jogar as plantas na lixeira de sua casa. Grande amiga!
  

     Alguns meses mais tarde,  fui novamente à casa de Catucha, para brincar no seu quintal. Qual não foi minha surpresa: as plantas que eu arrancara de nosso jardim avermelhavam o jardim da casa dela, com força, energia e cor.
     Catucha foi a primeira pessoa (?) a se aproveitar de minha boa fé.
      Catucha, você estará perdoada desta traição, desde que tenha seguido a carreira de botânica.
 Resultado de imagem para planta colchão e noivas

31 -- Primeiros anos em Bauru



31- MEUS PRIMEIROS ANOS EM BAURU




     Eu era cheia de fantasias. Na sala de visitas da época, ( mais tarde esta sala tornou-se a minha Sala de Música) havia aqueles sofás macios, com poltronas e cadeiras grandes e confortáveis, de estofados aveludados e maravilhosos, de um tom azul quase cinza.      
     Na mesinha do centro, havia umas bolas de cristal, com figuras abstratas  dentro, que se mexiam, quando as tocávamos. Naquela sala, com aquelas bolas de cristal pesado, passei muitas horas divagando, vivendo histórias imaginárias, cheias de encantamento. Horas e horas ficava ali, sonhando, imaginando, infelizmente esqueci-me o quê.  Eram objetos fascinantes, assim como vasinhos de porcelana chinesa, ou japonesa, com delicados filetes dourados, em desenhos clássicos orientais, sugestivos à minha divagação.

     Todos almoçávamos juntos, no horário. Minha mãe exigia cabelos penteados e mãos lavadas. Se alguém chegasse atrasado, ficava num canto, de castigo, enquanto todo o mundo se servia daqueles pratos que mamãe fazia inigualavelmente. Os mais assíduos no canto eram Nilce, Nassib, Nelson e Wilson, os campeões.

     Papai tinha fazenda, onde plantava café e criava bois. A época foi boa para o café e meu pai conseguiu fazer seu pé de meia, trabalhando arduamente na terra, sem horário definido. Ia de madrugada e voltava à tardezinha. Não se poupava. Ele mesmo fazia a contabilidade da Fazenda, com um grande livro em que registrava todos os colonos. Cada página revelava quem era o funcionário. Dia de admissão, vales, pagamentos etc. Alfredo tinha um processo pra indicar quando o colono nunca mais devesse ser readmitido: fazia um grande X sobre a página do funcionário. Esse sinal seria o lembrete de que o empregado tivera atuação negativa, principalmente no plano moral. Sálua adotou o mesmo sistema em sua agenda, onde registrava as domésticas.
     Na fazenda, havia máquinas de beneficiamento de café. E o café produzido pela Fazenda Matão era dos melhores. Era vendido diretamente para o escritório Carvalhaes (acho que era assim a grafia) em Santos, para exportação. Lembro-me muito bem que as agendas desse escritório eram enviadas a meu pai todos os anos. 
       http://www.agrolink.com.br/upload/agromaquinas/6582_4.jpg
(As máquinas de beneficiamento de cafe da Fazenda Matão eram muito parecidas com essas que achei no Google. Pena que não tínhamos, naqueles tempos, o espírito de registrar tudo em foto. Novos tempos com memórias garantidas.) 
           



       Graças a esta época, papai aumentou seu patrimônio. Comprou o sítio contíguo à fazenda, de nome Água Branca e o destinou aos filhos mais velhos, Labib e Nassib. Adquiriu um prédio excelente na Rua primeiro de Agosto. E mais: a Fonte Azul, em Conceição, com água mineral de altíssima qualidade. Adquiriu também mais casas em Piratininga. Comprou na planta dois apartamentos em São Paulo. destinados não para aluguel e, sim, para o desfrute da família.


 (A Fonte Azul, em Conceição, próxima a Bauru. Instalações no padrão das melhores águas minerais da época. Meu pai, de terno branco, à direita)

      Bons tempos! Não éramos ricos, mas todos nos achavam acima da média, em questões econômicas. Ninguém sabia como meu pai dava duro para conseguir o que tinha. E era zeloso com dinheiro. Não que fosse pão duro. Oh, não! Mas dinheiro se gastava no que fosse realmente necessário. Comida à vontade. Roupas pra festas, as melhores. Brinquedos? Aí é que a coisa pegava. Meus brinquedos eram pular corda, balanços, feitos por meu pai, uns brinquedos de meus irmãos, búricas e arame conduzindo uma roda, e, de quando em quando, brincadeiras de cozinhar puxa-puxa. Também jogar pião, bilboquê, ( nós dizíamos biblioquê, e, até hoje, tenho que buscar o dicionário pra saber a grafia correta) e ioiô Vamos dizer que eu me divertia bastante, mesmo sem bonecas. Bonecas? Não havia desse desperdício em casa. Nem luxos, nem compras que não fossem estritamente necessárias. Minha mãe dava conta ao meu pai de todos os gastos. Às vezes, até discutiam, porque o que mais doía em meu pai era a falta de dinheiro. Isto o deixava  muito nervoso. Nestes momentos, pensava que a culpa fosse dos gastos de casa. Mas nunca era assim. Minha mãe era tão ou mais econômica que ele. Supervisionavam o uso das luzes, o do telefone nos interurbanos. Naquela época os interurbanos eram caríssimos. Mas nunca recriminaram ninguém por banhos demorados. E nunca ouvi meu pai queixar-se dos gastos com nossas escolas. 
     Todos nós estudávamos em escolas particulares. As meninas ainda tinham o Conservatório. As cinco filhas de Alfredo e Sálua estudaram piano. Alice estudou canto, também. E acrescente-se que estudávamos nas melhores escolas da cidade: São José e Guedes de Azevedo. As mais conceituadas.E as mais caras, partindo-se do princípio de que, se é mais caro, tem mais qualidade.

     Neste lar abençoado, sempre houve muita fartura. Da fazenda vinham frutas, de sobejo, em caixas: mamão, laranja-lima, mexerica, laranja-baiana, limão, abacate, tangerina, laranja-pera, abacaxi: e verduras, principalmente alface, legumes: chuchu, cenoura, abóbora.  Algumas vezes, plantaram alho, cebola, algodão.  Ah, e havia a cana, para os animais e para a criançada chupar deliciada. Sempre havia milho brotando, crescendo, ou na época de colheita,  suas hastes longas e verdes, os pés de milho desafiavam soberanamente quem competisse com sua beleza e elegância. E, em grandes caldeirões de alumínio, minha mãe cozinhava uma quantidade enorme de espigas, limpas e perfeitas, amarelas e tenras, para comer à tardezinha, ou à noite. 
     Da fazenda vinham frangos, galinhas e porcos. Já limpos. Quando meu pai chegava com o porco, no sábado, à tarde, para tirarmos a gordura, prepararmos os pernis, era um pouco decepcionante. Bem no sábado! Minha mãe esquecia-se do cansaço da semana e, no balcão da pia da cozinha, comandava o trabalho, com as auxiliares, Nilce, Norma e Sônia. (Renée e Alice já eram casadas.) Depois de retirada a gordura do couro, nós a cortávamos em pequenos cubos, que eram levados para o fogão caipira, em tachos.  Depois desta (puta) labuta,(perdão: mas não foi possível evitar a rima) que cumpríamos, conversando e rindo, a gordura resultante era colocada em latas grandes ( de óleo, 5 ou 10 litros). Com o passar dos dias, ficava a coisa mais branca e linda que se pudesse imaginar. 
     Com esta gordura e, com manteiga derretida, acondicionada em grandes vidros, manteiga  batida por nós, surgindo dourada da nata branca, é que fomos criados. Ninguém poderá dizer que estas coisas me fizeram mal. Tenho uma saúde invejável até hoje. E, quando pequenos, nenhum dos filhos do casal Neme teve desmaios, fraquezas, moleza, palidez, tosses incuráveis, que eram frequentes em grande parte de nossos colegas de escola. Éramos fortes, crescemos fortes. A idade e os problemas da própria vida é que fizeram alguns entre nós, dos nove, mais vulneráveis às doenças, na idade avançada.

     Outra coisa que minha mãe fazia em tachos era doce de abóbora. Hum! Eu gostava muito!

     Os quitutes preferidos em casa eram quibe e esfiha. Com todos os acompanhamentos tradicionais: cebolas, carne moída refogada e temperada, nunca esquecendo o limão, cebolinha, hortelã e... aquela poderosa e deliciosa manteiga. Só com  esta maravilha láctea, o quibe não precisava de mais nada. Doces árabes eram mahmul, feito em assadeiras grandes, cada quadradinho com uma amêndoa descascada por cima, e, ainda uma calda para completar. Bolachinhas de gergelim (essas ajudei minha mãe a fazê-las muitas vezes) eram acondicionadas em grandes vidros herméticos. Assim que saíam do forno, direto às bocas gulosas e ansiosas. Doce predileto de meu pai era malabie (manjar branco).
       
 (Foto do Arábia, blog)  Só tenho a reclamar que nos tempos antigos uma colher de flor de laranjeira era perfume e sabor puros e hoje... nem cheira, quase nem dá sabor)      
      Durante a semana, meus pais adotaram plenamente o cardápio brasileiro: arroz, feijão, bife, salada, batata, ovo frito. Isto não enjoava, como as comidas árabes ou italianas. Macarronada com frango, ou à bolonhesa, era oficial aos domingos, mesmo se houvesse quibe ou esfiha. Sempre, no sábado, havia um frango temperado na geladeira para ser assado ou ensopado, ou frito no domingo. Sálua sabia fritar o frango como nunca soube que alguém fizesse. Ficava crocante e bem frito, macio e temperado na exatidão.

     Quando era muito pequena, mal ajudava minha mãe e minhas irmãs. Mas colher manjerona no canteiro isto eu sabia fazer. Nem assim deixava minha fantasia de lado. Com a tesoura, cortava os galhinhos verdes e cheirosos de manjerona e de hortelã, cantando musiquinhas da época: A mente longe, longe... “ Quem será que vai gostar de mim....” Era rumba esta música? Ou mambo? Sei que pegava na cabeça e no coração.

28 - Vizinhança da Cussi Júnior, 11-40

28- VIZINHANÇA DA CUSSI, 11-40

ANOS 40/50








( A casa, a morada da felicidade por muitos anos, depois de reformada. Por que continuamos a nos referir a ela como " em casa", como se ainda morássemos lá? Labirintos do coração.)






27- Vizinhança da Cussi Júnior,11-40, anos 40 e 50

 Os Filhos de Dona Lídia



     Eram nossos vizinhos e um pouco mais velhos que Norma e eu. A casa deles era contígua à nossa, também, lógico, do lado par da rua. Eram três filhos de Dona Lídia e cada um mais bonito e educado que o outro. Infelizmente logo se mudaram. Sniff, meninas sonhadoras!


Micisa, a Bela



         Morava na esquina com a rua Gustavo Maciel, sempre com o quarteirão 11 da Cussi Júnior. Seu nome era Maria Luísa. Era muito, muito linda. Estatura mediana, olhos e cabelos castanho-claros, parecia um tipo comum, não fosse a  delicadeza das feições, a intensidade do olhar, a maciez da voz. Seu irmão era amigo do  Labib. Chamava-se Homero Mário, até hoje um nome um pouco raro. 

           Micisa era da idade da Norma e mais amiga dela que minha. Mas, à noite, todas brincávamos juntas, as meninas: Norma, Micisa, Catucha e eu. Meninos: os filhos da Dona Lídia, Nelson e Wilson. Brincávamos de pique, principalmente, batendo com o anel de chapinha (todas as meninas tinham um no dedo anular) no poste, para vencer o perseguidor. Aquele som ecoava na noite, uma delícia provocá-lo. Voltávamos pra casa, suados e felizes. Era uma correria só. 
            Outra brincadeira comum era a do teatro. Todos participavam.  E, no dia de teatro, havia até ingressos. O palco ficava na garagem de minha casa, com cortinas e tudo o mais que pudesse dar aquele clima de encantamento, o fascínio de um teatro, que nem conhecíamos, mas adivinhávamos pelos filmes a que assistíamos nos cines da cidade.

          Micisa e Norma sempre eram as protagonistas das peças. A única vez em que fui a mocinha da história, a peça teve arrecadação zero. Ô zebra! Mas com Norma e Micisa a bilheteria ia a toda.

         Micisa além de bela era interessante. Tinha o encanto das mulheres-deusas. Não admira que, quando moça, tenha fascinado um médico baiano, que trabalhava em Bauru e com quem se casou. Confesso: entre nós todas, ela e a Norma é que irradiavam o mistério, a delicadeza e a beleza de uma mulher. Cheias de charme.
          Lembro-me de Micisa, num dos bailes do Tênis, numa roda, ( talvez fosse carnaval ) dardejando um olhar transbordante de feitiços, para seu então namorado médico. Meu caro, resistir quem havia de? Só faltou o jovem médico derreter-se com aquele mel de códigos cifrados. Capitulou incontinente.

Sobrado Sinistro



     Lembro-me, como num sonho, ter tido uma amiga que morava num sobrado, do lado de baixo da rua, número ímpar, parecendo um castelo. Não consigo nem sequer rever na memória o rosto desta minha amiga que me chamava frequentemente para brincar em seu quintal enorme, sombreado por muitas árvores. Morou pouco tempo ali. 
     Só depois que ela se mudou é que notei como o sobrado era sinistro. Um grande cipreste lançava, à noite, sombras assustadoras sobre uma vidraça alta, atrás da qual se via, nebulosamente, pela opacidade dos vidros, uma escada hitchcockiana entre o térreo e o andar de cima. Mas eram imaginações de mentes como a minha, afeita a leituras de romances policiais. Quem viveu lá, depois de minha amiga sem rosto e sem nome, nada tinha de tenebroso, foi Dona Valdir, que encantou a mim e a Norma. Uma mulher carismática, simpática, envolvente. Tão adorável que foi a nossa escolhida como madrinha de crisma, minha e da Norma. Também não ficou muito tempo ali e mudou-se, não sei se de cidade ou só de endereço em Bauru. Uma pena!

     Os próximos a escolherem o sobradão foi um casal jovem. Gente bonita, mesmo. Eu já era moça, a Norma ainda não encontrara o Said. 
     O casal teve um filho e a atitude dela foi paranoica. Havia uma folha colada à porta do quarto do bebê, com proibições, imposições e leis para as visitas. A gente já desconfiava que ela fosse sui generis.  O marido era advogado, simpático, normal. Não seguia o catecismo da esposa. Ainda bem! Mesmo assim, mal entramos no quarto do pequenino, com medo de deixarmos germes e bactérias por lá. Imagine a vingança da mamã contra nós, se algo semelhante houvesse acontecido! E aquela escada!! Psicose!!!


Sr Sebastião, Dona Quinha e Nini



     A casa do Sr. Sebastião era a mais próxima de casa. Tão próxima que da sala dele dava pra ouvir todas as nossas conversas. Do quarto de meus pais, da sala de música idem. Também, reciprocamente, ouvíamos tudo, até as tosses do Sr. Sebastião, o barulho da descarga do seu banheiro...        
     As casas eram separadas por um corredor comprido de uns oito metros, com largura de três a três metros e meio se tanto, e por um muro de altura padrão.

     Eram ótimos vizinhos. O Sr. Sebastião era da moda antiga e chamava-nos, a mim e a Norma, como Dona Norma, Dona Sônia. Nós tínhamos oito a dez anos. Era estranho, mas engraçado. Dona Quinha era como o nome dela:  velhinha, arcada, miudinha, magrinha, doce, doce. Nini era aquela vizinha que todo o mundo tem ou gostaria de ter. Sempre solícita, sempre pronta prum bate-papo. Prestativa, cheia de dons, solteira, gostando de cuidar dos pais, dela mesma e ... da vida dos outros. Normal! Boa pessoa, sim. Bordava frivolité, uma renda que só as muito prendadas sabiam fazer. Presenteou-nos com algumas toalhinhas e golas feitas por ela.

     Quando me tornei excelente aluna de piano, o Sr. Sebastião era o mais entusiasta apreciador de minhas performances. Algumas vezes, não se continha, tocava a campainha de casa e pedia licença pra ouvir-me na sala em que eu estudava.

     Ele e Dona Quinha fizeram uma festa de sessenta anos de casados. Foi numa fazenda dele e eu, durante a festa, conquistei um admirador, um delegado. Enfim, eu estudava tanto que nem sabia como era namorar. Não que não acalentasse muitos sonhos de amor.

     Afinal, estes vizinhos eram extensão de minha família. A voz grossa do Sr. Sebastião até hoje chega a meus ouvidos, pela gentileza e educação com que sempre me tratou. E mais: por ser admirador da pianista que eu era, e por nunca reclamar dos estudos, às vezes repetitivos e sem melodia, que invadiam sua sala: 
     -- Dona Sônia, (e eu, com treze anos, se tanto) a música faz bem até aos animais.
     Que bom ter tido vizinhos tão compreensivos e amigos! 

Nelly

       Nelly veio morar na Cussi Júnior, depois que o Dr Demétrio e família se mudaram do lindo sobrado. Dr Demétrio era pai da Catucha, que merece um post especial.
       Nelly se casara com um homem muito mais velho. Era ela um pouco mais velha que nós. Acho que Norma e eu pegamos a doença do Sr Sebastião e passamos, desde aqueles tempos, a chamá-la de Dona Nelly. Ou vai ver que, por julgarmos seu marido velho, teríamos também que considerá-la assim e tratá-la com respeito e solenidade. Ah, nem entendo como isso aconteceu.
       De todas as vizinhas, era Nelly a que considerávamos da família. Foi a melhor amiga de Sálua. Era outra filha pra minha mãe. Uma filha alegre, que lhe confidenciava tudo. Seu dia a dia, seus temores, suas alegrias, suas paixões. Uma voz forte, cheia de vida e de energia. Não se preocupava com horários. Ficava conversando longas horas com minha mãe, em 90% das vezes, só com boas notícias, coisas engraçadas que as faziam rir e se comungarem num amor sem explicação. Nelly é falante e Sálua discreta. O diálogo ideal. Nelly chegava a nossa casa logo depois do almoço e só voltava pra sua casa quando Alfredo chegava da fazenda, ou às quatro horas, ou às seis, conforme a jornada lhe fora imposta por Deus. Nelly dizia:
        -- Dona Sálua, Já estou indo. Sei que quer cuidar do Seu Alfredo. Até amanhã. 
       Com beijinhos na face e um delicioso sorriso nos lábios, cumprimentava meu pai e ia-se para seu lar.

       Amo Nelly pelo que representou à vida de minha mãe. Uma amiga sincera, uma filha que a vida lhe apresentou. 

Dona Lourdes

       Energia, profissionalismo, amizade, delicadeza, simplicidade, falar mais o quê? Idem Sr José, seu marido. Pais de quatro garotos incríveis e adoráveis. (Escrevo garotos, mas hoje são médicos, engenheiros, dentistas, promotores)
       Frequentemente Dona Lourdes, que morava na casa bem defronte à nossa, conversava com Sálua, de varanda a varanda. Eram todos os assuntos, principalmente o de plantas, que as duas adoravam e das quais cuidavam com todo o desvelo.
       Dona Lourdes é um afago cálido na memória.
       Quando Alfredo e Sálua já tinham deixado esse mundo, Dona Lourdes, que era espiritualista, nos confidenciou que à noite viu os dois conversando, sentados nas cadeiras da varanda, como sempre haviam feito. Acredito. E acredito, que embora a linda e acolhedora casa tenha sido demolida, deve continuar a existir em outro plano, para eles, para Dona Lourdes e para nós também.