domingo, 29 de março de 2015

36 - Segundo grau



36 -  SEGUNDO GRAU





      Continuávamos, no São José, ao longo das séries do antigo ginásio com a mesma formação de classes. Portanto eram sempre os mesmos colegas, com pouquíssimas exceções. Quando terminei o ginásio (8ª  ou 9a. série atualmente) tive grandes problemas com Matemática. A professora era ainda a Irmã Júlia. a italiana que falava boracha. E eu não conseguia compreender o que ela ensinava, porque meu pensamento voava, voava. O resultado foi até melhor do que eu merecia: fui aprovada nessa disciplina com nota mínima: cinco.      
     Nas outras matérias eu ia bem, sempre com esforço e dedicação. Francês, Latim e Português eram o meu forte. Também me desincumbia relativamente bem nas demais disciplinas.

     Eu tinha um sonho: o de estudar no Instituto de Educação Ernesto Monte. Era escola pública e notoriamente a melhor escola de Bauru, entre particulares e públicas.  Meus pais concordaram com meu plano. Pensava cursar o Clássico, que se destinava a Letras ou a Direito (Hou hou hou!, olha a influência de uma frase à toa) .

      Assim, disse adeus a uma parte do São José, porque na outra parte, o Conservatório,  continuaria com o curso de piano. Fui, feliz da vida, para o Ernesto Monte. Mas com um medo danado de ser aluna do professor Dimas, o melhor professor de Matemática de Bauru. A fama dele se estendia por toda a cidade.Torcia para que não fosse ele o professor de minha turma.

     O IEEM ficava na rua Agenor Meira, dava muito bem para ir a pé. Não era tão próximo de minha casa quanto o São José.  Uns sete quarteirões, ou pouco mais. Só que era um no plano e os demais em subida. Às vezes chegava esbaforida, mas era raro. Em geral,saía com bastante antecedência. Na hora da volta, além de estar mais despreocupada, era só descida. Bauru é assim: subidas e descidas, sem que haja ladeiras. Num instante, eu já chegava a minha casa.

     O curso clássico funcionava à noite. Eu saía a pé, às seis horas e subia a Rio Branco. A casa do professor Dimas era na esquina com a Sete de Setembro. Mas eu ainda não conhecia a fera.

               

(Essa carteirinha foi no último ano do Curso Clássico. Cruzes! Há erro ortográfico!)
A primeira aula foi uma emoção. Conheci muitos colegas, a quem devoto amizade até hoje. E, principalmente, conheci Mari, Maria José. Linda, fina, educada, bem humorada, estudiosa. Em minha classe de 1º clássico, reencontrei a Lia, que já era minha amiga do São José. Havia a Maria Helena, a Gertrudes, ou Tudinha (mais ou menos a Winits de hoje). A Eneida, o Joaquim, o Régio Eduardo, o Éclair, o Uzi Murbach, o Sílvio e o Gedeão. Ah, e o Sr Machado. São estes que ficaram em minha memória. Desses todos, continuei amiga por uns bons tempos, mas a vida foi-nos distanciando. Não com a Mari: nossa amizade era muito sincera e venceu a distância no tempo e no espaço. Correspondemo-nos sempre e sempre nos falamos ao telefone.

     Quando Dona Diva entrou na sala pra sua aula de Francês, ah, já sabem: arrasei. E os meninos cochichavam: São José! Orgulho de minha ex-escola! E Dona Diva era fascinante, e ainda o sobrenome era francês! Fleury! Que charme! Ensinava com conhecimento de causa!

     Finalmente, saberíamos quem seria nosso professor de Português: ah, que delícia de aula! Prof. Peixoto. Entrava na sala, pesado, com passos vagarosos, uns cinquenta anos bem vividos,  de voz grossa e amável aos ouvidos, com o cigarrinho na mão, dirigia-se religiosamente à janela, onde atirava o cigarro que estava fumando. Grandes óculos, porte forte, sempre de terno e gravata. Suas aulas convidavam à paz e ao estudo. Amei. Amei. Amei. Se eu já gostava de Português, aquelas aulas reafirmaram minha futura escolha profissional. Quando o professor ia ler uma poesia, fazia uma dedicatória:”esta poesia vai para a Maria José.” Ou: esta poesia dedico a Lia. Ou a Sônia, lógico.
     Os boatos corriam: o passado de nosso professor: fora padre e abandonara o sacerdócio por amor a uma mulher, com quem formara uma linda família. Em Bauru, isso de padre abandonar a Igreja foi muito comum. 

     O Professor de Inglês era moço, solteiro e tinha um nome esdrúxulo: Cléstenes. Era moreno, magro, algo atraente. E era dono da voz mais sonora que já ouvi. Adorava ouvi-lo fazer a chamada e declinar meu nome, algo cantante e fascinante. Uma sinfonia para meus ouvidos. Era bom no que fazia. E, no terceiro ano, disse-me que eu era sua melhor aluna! Pena que eu já estivesse comprometida irremediavelmente com o Francês.

     A Professora de Geografia era também solteira, com um sorriso sincero e brincalhão nos lábios, sempre de bem com a vida. A gente já formulava um romance entre ela e o Cléstenes. Evidente que só na nossa cabeça romântica. Pela primeira vez, entendi Geografia. Ela explicava muito bem. E mostrava mapas, coisa que ainda eu não tivera oportunidade de ver. O nome dela era Chiquinha.

     O Professor de História era também solteiro, moreno, bonitão, alto, forte, também sempre de terno e gravata. Nossa! Dava matéria sem parar. Sabia tudo de cor. Eu gostava muito de história e, portanto, logo me tornei sua melhor aluna. Conseguia sempre as melhores notas. “ Quando a Espanha mexia, a terra tremia.” Fascinante, encantador.

     Nos primeiros dias de aula, minha preocupação era o Dimas. Seria ele nosso professor? A cidade toda sabia que ele era o melhor professor de Matemática de Bauru. E que era enérgico. Ai, meu Deus. Depois de ouvir tanta boracha, e viajar em meio às explicações, não poderia ter muita confiança em meus conhecimentos aritméticos ou qualquer coisa nesses caminhos. Estava  morta de medo do Dimas. E, quando ele entrou em nossa sala de aula, pois era ele mesmo nosso professor, veio pela porta de trás, atravessou o corredor até sua cátedra, (sim, naquele tempo, havia a cátedra, um degrau mais alto que as carteiras de alunos), meu coração batia tão forte e rápido que pensei fosse sair pela boca, ou que os colegas acabassem por ouvi-lo, dando pinotes de medo, palpitando de pavor. Era este o homem! Era esta a fera! Estatura média, moreno-claro, fisionomia bem feita e séria. Pensando bem, acho que nunca o vi sorrir. Ele pôs seu material sobre a mesa e começou a despejar e explicar a matéria. Sempre de jaleco branco, sempre com um giz na mão, sempre obstinado, sério, competente e ...  CLARO!!!! Quando ele parou pra perguntar se havíamos entendido, percebeu que eu estava boiando. Dirigiu-se a mim diretamente: “Você não entendeu?” Fui obrigada a dizer que no São José não tinha estudado raiz quadrada.  Ele me olhou com um ar desalentado, cansado, que mais tarde repeti muitas vezes como professora, virou-se para o quadro negro e explicou o que eu não sabia. E eu entendi. Porque ele sabia do que estava falando e sabia ensinar, fazer-se entender.      
     Aos sábados, Mari, Lia e eu estudávamos compenetradas os teoremas para a prova. Lia tinha em sua casa um local de estudos, com lousa e tudo de que precisávamos. Um charme. Era lindo! 
     Apaixonei-me por Matemática porque finalmente a entendia. Como era bom saber matemática! Quanta alegria no meu coração! E eu que pensava que jamais seria competente nesta matéria. Preciso dizer que fui a melhor aluna do Dimas neste ano? E, ao final do ano, ganhei um prêmio pelas melhores notas alcançadas em minha classe. O Régio seguiu-me bem próximo.

     Todas as noites, eu voltava do Instituto Ernesto Monte com o Labib ou com o Nassib. Era raro voltar a pé. Saíamos muito tarde e meus irmãos ficavam me esperando. Quase sempre dávamos caronas para a Mari ou para a Lia.

     Entre os professores solteiros, ainda havia mais um: o Ernani, professor de Química. Era um conquistador barato, mesmo. Régio e Éclair diziam que iriam vestir roupas de mulher para  serem chamados à lousa. Porque ele chamava só as meninas. E galanteio pra cá e galanteio pra lá. Acho que era meio tarado. Mas era lindinho que só! (Muito mais tarde, ele casou-se com uma colega  menina loira, com tranças grossas de cabelos crespos, lindos e grandes olhos azuis, a verdadeira expressão física da beleza de um anjo, de ótima família e de excelente humor. Aquela pele de boneca, olhos faiscantes, mais azuis que o céu que nos cobria, um sorriso largo, de lábios generosos e dentes alvíssimos e proporcionais à boca. era minha colega no Conservatório. Não foi uma boa casar-se com este doidivanas. Um desperdício de toda aquela candura, beleza e bondade.O casamento não durou, óbvio).

     No segundo ano, quase todos os professores foram substituídos. A maior parte preferiu ficar com o Científico e não com o Clássico. Sniff! Perdemos o Prof. Peixoto, o Dimas, o Gori, a Chiquinha. Ficamos inconformados. Uma jovem, cujo nome esqueci, substituiu o Ernani, em Química. Aí ganhamos, porque ela dava matéria como uma máquina. E fizemos aquelas experiências com sapos ou rãs, não me lembra. (E não me saiu das narinas, por muito tempo,  aquele cheiro forte de animal servindo de cobaia aos nossos estudos. 
     E o pior. O Dimas nos abandonou: não aguentou a lerdeza de nosso raciocínio de futuros professores ou advogados . O Prof. Ildebrando o substituiu.

     No segundo ano, veio um professor de Português, era muito pobre, um bom professor. Suas roupas, ternos e camisas, eram surrados, seus sapatos, gastos e sem brilho, um mestre  bem diferente dos professores com quem convivíamos.(Naquela época ser professor era para nobres) Mas era muito querido, e nosso coração se condoía de sua pobreza. E havia um professor de Filosofia, que era adepto de uma religião rígida, daquelas que não aceitam transfusão ou tratamento médico. Era uma figura meio extravagante, pequeno, magro, daquele tipo que se perde na multidão e que nunca sobressai nem intelectual nem fisicamente. Poderíamos ter aprendido mais com ele, se houvesse um planejamento melhor. Tínhamos um grande livro de Filosofia e ele escolhia os capítulos, aleatoriamente, às vezes desprezando a ordem lógica. Enfim com ele aprendi o silogismo e afins. Mas sinto falta de não ter estudado mais filosofia, naquele compêndio que apresentava tudo desta ciência. 



OLÉ!



     Havia dois irmãos que nos davam aulas: Ildebrando, de Matemática; e Isaac, de Física. Eram espanhóis, morenos claros, educados, finos, inteligentes, inesquecíveis. Minha gratidão a estes representantes da colônia espanhola, madrilenhos, sempre lecionando de terno, gravata, camisa de mangas longas, sempre com as roupas limpas, passadas, esmeradas, mãos de artistas, brancas, de dedos longos, com unhas limpas. Sempre sérios no seu mister. Inteligentes, sábios e modestos.

     Fui fã de carteirinha destes dois mestres, dedicados e compenetrados. Basta dizer que continuei com minhas belas performances na Matemática e na Física. Não que eu fosse tão inteligente! É porque eles eram bons demais, sabiam explicar muito bem. Eu cheguei a adorar Física, veja só, que insólito acontecimento em minha vida de raciocínio lerdo e fraco.



GEDEÃO



     Um nome realmente bíblico. Era um colega alto, bem alto, loiro, bonito, atlético, comunicativo, tinha tudo de bom. Mas a voz... era um desastre. Fina, aguda, nada tinha a ver com o tamanhão dele.

     Houve um dia em que ele estava conversando comigo no portão de minha casa, aí chegou o Nelson, meu irmão soçaite e humorista. Quando eu lhe apresentei o Gedeão,  o meu colega lindo respondeu naquela vozinha fina “ muito prazer “, o Nelson caiu na gargalhada, achando que era piada. E  o Gedeão nem notou que as risadas eram por causa do seu timbre mais para soprano que para tenor, e continuou a falar. E o Nelson soltou outra gargalhada! E o Gedeão nem parou para desconfiar. Continuou a conversar. Aí o Nelson não aguentou e falou: “ Também agora chega.” Só que não era brincadeira, não. A voz dele era inesquecível de tão horrorosa. Tamanho homem com aquela vozinha! Realmente... Por isso nunca me apaixonei por ele. Já pensou aquele homão falando naquela vozinha fina “eu te amo”? Há! Há! Pra mim não dava, não. Mas pra uma colega, com o nome de Eneida, deu muito bem. Apaixonou-se por ele e até namoraram.

     Gedeão na aula era um tanto cínico. Implicou com o Prof de História, porque ele ditava toda a matéria. Não me lembro de termos tido livro específico. E aí o professor passava a aula ditando a matéria. Ditava e ditava, sem consultar nenhum livro. Sabia tudo: nomes, datas, lugares. Aí o Gedeão resolveu parar a aula. “       
     "--Professor, eu não entendi.” O professor ficou meio abalado, porque história naquela época era história mesmo, não tinha o que não entender. Ele repetiu o que nos ditara. Com as mesmas palavras. E o Gedeão, muito pê da vida. 
     --“Continuo não entendendo.” Novamente o professor tentou explicar, só que ele usava sempre as mesmas frases e palavras que nos ditara. Ipsis litteris. E o Gedeão, impiedoso:” Não entendi”. Na última vez que nosso professor foi explicar, isto é, com as mesmas frases e palavras com que ditara, ficou vexado e nervoso e nem conseguiu proferir  frase alguma. meu adorável professor ficou superconstrangido, repetindo: 
     --“Foi um lapso de memória, foi um lapso de memória.”

     Gedeão, a caridade não figurava em seu cardápio diário, hem? E, se sua pretensão era a de parar com a matéria, você conseguiu, pois, naquela noite, ao invés de umas quatro folhas de caderno, levamos pra casa apenas uma e meia



RÉGIO E ÉCLAIR



     Entre todos os colegas, Mari e eu nos dávamos melhor com o Régio e com o Éclair. Eram simpáticos, alegres, e formamos um quarteto muito amigo. Meus cadernos sempre viviam com eles, para copiarem algo que tivessem perdido, ou qualquer coisa semelhante. Numa destas vezes, eles deixaram um bilhete pra mim. Prognosticavam o futuro. Sabiam já o que queriam fazer profissionalmente: mais ou menos, era assim:

     "Sônia, guarde este caderno com a assinatura do promotor Régio Eduardo Costa Barbosa".

E, na outra linha:

     "Sônia, este é o autógrafo do Juiz de Direito, Éclair Baneditti."

     Fiquei sabendo, muitos e muitos anos mais tarde, que eles cumpriram o próprio vaticínio. Parabéns, amigos! Pena nunca mais nos falarmos.
          
MARI
     Realmente foi a primeira best friend que tive na vida. 
     Foi no primeiro ano do Curso Clássico. Ela sentava-se paralela à minha carteira. Havia, na classe, uma outra garota, Maria Helena, que era conterrânea de Mari, e, por isso, tinham muita amizade. Como Mari estivesse morando em Bauru, e próxima à minha casa, e como nossos gênios eram semelhantes pela educação e costumes, logo nos demos muito bem, combinando dias de estudo antes das provas.
     Acredito que eu ia mais à casa dela que ela à minha. Estudávamos organizada e intensamente Matemática e nos saíamos muito bem.
     Mari, clarinha,   loira, olhos verdes, corpo bem feito, elegante, fazia bastante sucesso com os colegas. Um deles, Régio, interessou-se vivamente por ela e, naquele clima de juventude e de confiança, começaram a namorar.
     Eram muito lindos os dois: ambos altos, elegantes, de olhos cintilantes e de riso fácil.
     Enquanto isso, o Eclair se derretia pela fascinante Gertrudes, carinhosamente chamada de Tudinha.
     O ciúme do Eclair era evidente, porque a Winits (Tudinha) era uma espécie de Gabriela, lançando olhares à direita e à esquerda. A um elogio do Professor a ela, o Eclair só faltou saltar ao pescoço do mestre. 
     Coisas da juventude.
 

     No segundo ano do Clássico, a maior parte das meninas se bandeou pro Magistério. Inclusive uma amiga do coração: Lia.

A classe ficou bem reduzida. E, no último ano, só foram aprovados, sem segunda época, quatro alunos: Régio, Éclair, Mari e eu. Comemoramos na Lalai, com um champagne francês. Os meninos pagaram a conta. Foi chic e adorável. Nunca mais nos encontramos os quatro.
           O namoro da Mari e do Régio seguiu em outra direção: Namoraram por um bom tempo. Todos acreditavam que aquele amor juvenil transpusesse as areias do tempo Mas, bem no último ano da Faculdade, quando Mari e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro, o amor começou a definhar. Até que acabou.
      Ainda reencontrei o Régio numa festa, casamento, nem me lembro bem. Dançamos e ele me contou que aquele era seu último canto de cisne, pois iria se casar no mês seguinte. Sofri por minha amiga, mas só lhe passei esta péssima notícia muito tempo depois, quando ela já namorava um outro rapaz. Mas penso que, na hora que soube do casamento dele, seu coração doeu e iria doer por muito tempo. Coisas da vida! Quantos encontros e quantas separações!
     Os três anos de Faculdade nos ligaram ainda mais.

     Mari é um lindo capítulo de minha vida. Sua casa ficou em minhas retinas, a sala da casa da Antônio Alves, onde havia, na parede, um quadro pequeno de uma casinha, um lago e um luar. Amava aquilo.
     De sua casa da Gustavo Maciel também me lembro e de sua prima que a visitou. Era a criatura mais linda que eu já vira. Ah, nessa casa havia um gato.
     Os pais de Mari eram adoráveis, educados, gentis. Dona Anita era de pequena estatura, falava baixinho e costurava as roupas da filha, como verdadeira mestra das tesouras. E tricotava também com a mesma facilidade e arte.
     A história da Mari parece  de contos de fada. 
     Quando uma amiga comum  soube que éramos colegas, imediatamente exclamou:
     --Você sabe que ela é adotada?
      Nem respondi. O que importava esse fato? O que mudaria em nossa amizade?
     Norma e eu silenciamos e, acreditem, nem mesmo entre nós comentamos o fato, porque amávamos a Mari por ser a Mari.
     O mais incrível, e a maior prova de quanto Mari era amada por quem a conhecesse, que Júlia, nossa colega da faculdade e amiga comum, que conhecia esse fato, e eu, que guardava zelosamente  esse segredo, que, revelado, poderia destruir a paz de uma família, nunca , nunca comentamos uma com a outra o fato. Só nesses últimos anos, em que a Júlia comemorou seu 70o. aniversário, é que  soubemos que a Mari ficara ciente de tudo, pois sua mãe, no leito de morte, resolvera revelar-lhe o segredo. Aí, sim, pusemos fim ao segredo de uma vida, uma vez que já havia sido revelado. Aí nos demos conta de quanto Mari era importante pra nós. Passamos os quatro anos da Faculdade, como amigas inseparáveis, e não revelamos uma a outra o segredo do casal Anita e Francisco
     Dona Anita queria saber se fora uma boa mãe. Eu, que pouco vivi com eles, posso dizer que sim, Dona Anita. Você educou a Mari e tornou-a tão especial. Isso não é só mérito do caráter e da personalidade de minha amiga. É fruto de hábitos, costumes, enfim, de educação.
     Posso sentir que a revelação foi funesta para minha amiga. Com sofreguidão se pôs a investigar suas origens, até que, finalmente, soube de tudo. E o conhecimento a deixou um pouco amargurada, pois esperava amor e recebeu quase indiferença. A essa altura, estava física e moralmente alquebrada. 
     Como sou simplória, em seu lugar, agiria de outra forma. Talvez nem me interessasse em saber dessa família que me esqueceu. Eu me ateria ao pai e mãe que me tivessem educado e me dado as melhores oportunidades. Os pais que me viram sorrir, me ensinaram a falar e a rezar. Os pais que infundiram em meu coração a fé, o amor a Cristo, a Maria. Os pais que me amaram às vezes sem declarações de amor.
      Mas isso sou eu, a simplória, que não gasta tempo em aprofundar filosofias ou em fazer investigações.
      Em sua infância e juventude, Mari, por ser tão bem cuidada, bem vestida, por ser bonita, elegante e graciosa, foi alvo de muita inveja. Seu coração generoso e cristão perdoa. 
     Boa sorte, sempre linda Mari!