terça-feira, 19 de novembro de 2013

10 - Vida de Casados



            10- VIDA DE CASADOS
      Quando os nossos heróis – e são mesmo heróis - se casam, Sálua é ainda uma criança. Quatorze anos, recém-comemorados. O uso da palavra criança é com intuito documental,  tentando ser o mais possível fiel em relação aos fatos.

      Fahda chama Êssar e o avisa: “ Sálua é uma criança. Você terá que esperar. Meu filho, respeite-a. Tenha paciência e aguarde o momento correto.”

      Êssar faz mais do que obedecer aos conselhos maternos. Faz deles sua premissa maior e, nos primeiros tempos, resguarda Sálua de intimidades conjugais.

      Sálua é tão criança e tão ingênua que pensa que irá com as irmãs para a Argentina. Quando sabe que só ela ficará no Brasil, que sequer assistirá ao casamento das irmãs, chora, desolada. Seu desespero é tão grande, que Êssar, comovido,  promete-lhe que, futuramente, a levará para a Argentina, Ela acalma-se e, mal e mal, resigna-se. (Esta promessa Alfredo cumprirá trinta e sete anos depois. Don Alfredo, el Cumplidor!.

      (Adma e Rosete, acompanhadas por Sêmi, logo se dirigem  à Argentina, também com uma incógnita no futuro. Adma casa-se com Manuel Sago. (Dessa união,  quatro filhos vêm ao mundo: Lito, maravilhosa criatura, hoje gerente de banco,  Haydée, professora, Osvaldo, engenheiro e Guillermo, médico, humanitário,  assunto de muitas reportagens nas revistas argentinas.) 

(Foto do encontro das irmãs Sálua e Adma, 37 anos depois de separadas pelos casamentos. Da esquerda para a direita: Alfredo, Sálua, Adma, Guillermo, Sônia, Norma, Osvaldo. Foto tirada numa praça famosa pela fonte dos desejos.m Córdoba, onde os dois irmãos menores moravam. Lito era gerente de banco em General Pico, com quem os pais viviam. Haydée, professora em cidade do interior)

      Rosa casa-se com o dr. Camilo Sago, médico. Desde que chegara à Argentina, por ser jovem demais, logo se adapta ao país do tango. Estuda e segue a carreira do magistério . Estabelecem-se o marido e ela em Rio Cuarto . (Camilo e Rosa têm  três filhos: Diana Rosa, Helena e Eduardo.)




      Voltemos a Alfredo e Sálua. Depois de casados na cerimônia religiosa, passam a dormir em cama de casal, mas dormem como dois anjos. Quanto amor é capaz de  domar o desejo de um coração apaixonado! Alfredo supera  a prova, com tal compreensão que Sálua sempre lhe será grata. “Um gentleman” - narraria, laconicamente e com discrição, muitos anos mais tarde, caprichando na pronúncia da palavra inglesa.

      Quando, finalmente, Sálua está "pronta“, conforme delicada expressão de Fahda, a paixão represada irrompe arrebatadora. Para todo o sempre. No esplendor do amor, entregam-se também um ao outro, de tal maneira, que um entende o cônjuge sem palavras. Não que dispensem as conversas. Falam sobre todos os assuntos. Êssar conta-lhe o dia de trabalho, com todos os detalhes acontecidos na jornada. E Sálua nada esconde do marido. O que fizera, com quem conversara, quem estivera lá em visita, as bondades e implicâncias de Fahda. (Esse hábito de se confidenciarem com toda a sinceridade, levaram pela vida afora.) E, em meio à trivialidade do dia, olhares cúmplices, risos escancarados, um prazer indescritível em estar com o outro. Vertigens com a proximidade física, canções libanesas cantadas a duo, mãos agarradas, e Alfredo já cantando e dançando as músicas do carnaval brasileiro...
       O coração de Sálua parece  um campo, onde brotam as flores do amor. Em tão pouco tempo, Alfredo vai tomando posse de seu coração, de seus pensamentos, de sua vida.
      A ligação entre eles é absolutamente ilógica. Sálua poderia se esquivar e se rebelar. Gritar aos céus seu desespero de órfã praticamente abandonada pelos irmãos, sozinha em terra estranha,  com noivo que surgira, como num passe de mágica, em seu caminho. Entretanto, desde os primeiros olhares e palavras, sentem-se acorrentados um ao outro.
      E Alfredo poderia também agir de maneira completamente diferente: diante da ingênua e inocente Sálua, uma quase criança, decepcionar-se. Poderia escolher outra jovem, de Piratininga. Há tantas espichando o pescoço pra olhar pra ele! Mas não. Aquele sentimento inexplicável surge entre Sálua e Alfredo, de um modo avassalador. Comprazem-se na companhia um do outro. Trocam palavras, olhares, confidências. Sálua, tão sozinha, desde a perda dos pais, tem agora alguém que a ama mais que tudo na vida. E a esse amor intenso ela sucumbe, totalmente enamorada.  São sinceros, apaixonados, confiantes.

      O amor está no ar... O ciúme também, de ambas as partes. Alfredo não pode ouvir falar do primo, de São Paulo. Sálua tem birra com a ex-noiva e não suporta umas certas moçoilas que arreganham sorrisos e piscam o olho para Alfredo.



25 - O CAMAROTE DE NÚMERO ?

Cinema, paixão herdada.


          Em Piratininga, havia um divertimento adorável: o cinema. Era o Cine Omar. .
          Alfredo sempre adorou um filme, uma história bem contada. E Sálua também fazia gosto neste entretenimento. No prédio em que funcionava o cinema, havia, além das poltronas, camarotes para os mais apaixonados pela sétima arte. Eram alugados por um ano. Mais que depressa, Alfredo, no começo do ano, escolhia um para sua família. Ficava do lado direito de quem entrasse, quase ao centro. Cabiam nele até seis pessoas. Hoje em dia, sabemos que nos teatros há camarotes. É interessante conhecer esta prática antiga: camarotes no cinema. Muito bom! Devia ser a maior delícia. Ninguém na frente, visão magnífica! E lugar garantido.

          Meus pais costumavam ir ao cinema, uma ou duas vezes por semana. Estas saídas eram tortura para Fada. Não gostava que Sálua saísse. Não gostava que os dois saíssem. Ficava nervosa, emburrada, mal humorada. Como perfeita rabugice, dizia frases em árabe, que nenhum dos netos entendia, mas que davam a medida de seu descontentamento. Isso na calçada, com os dois pombinhos felizes dirigindo-se ao cinema. Cinco minutos depois, arrebanhava os netos para sua cama e..

          “kêniamaken
           abuluzamen”...

          Nós nos ajeitávamos em suas cobertas e nos preparávamos para viajar a outras paragens, a outras histórias, que mal entendíamos, porque eram narradas em ...árabe!!!  Mas, nem sabemos como, de algum modo a entendíamos porque mergulhávamos na imaginação, sob a doce voz da avó.

          Enquanto isso, o casal, de mãos dadas, na sedução da penumbra conspiradora, seguia, com olhos encantados e coração em tambor, as emoções dos personagens do filme.

          As mensagens de bondade, patriotismo, amor, lealdade, que o cinema trouxe ao jovem par,  naquele sugestivo e aconchegante camarote, ficaram gravados para sempre, em seus olhos, em seus sonhos e em suas almas.

CASA CENTRAL     

Alfredo tem sua rotina. A loja, os fregueses .

      Sálua, em pouco tempo, toma conta da casa, arruma, faz sabão em casa, cozinha, assa pães no forno à lenha. Mas Alfredo nunca a deixa varrer a casa. Para isso, e para os trabalhos pesados, contrata ajudantes, sempre. Para Alfredo, cozinhar, sim, atividade nobre. Mas Sálua lavar louça e pegar numa vassoura, jamais!
       Como Sálua é rápida, assim que se desincumbe das tarefas, corre à loja, a fim de ficar com o marido e ajudá-lo. Olham-se nos olhos, com amor, compreensão e paixão crescentes. Um passo aqui, procurando uma ferramenta para o freguês, e um beijinho, ali, atrás das prateleiras. Alfredo se derrete quando encontra seu doce e profundo olhar.