quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

23 - - Norma, flor de nosso jardim

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23 - NORMA

  "Mamãe passou açúcar ni mim".













“ Vestida de azul e branco
Trazendo no rostinho franco
Um sorriso encantador
Ai, ai ai!
Minha linda normalista, rapidamente, conquista
 Meu coração sofredor...”

          Agora a emoção vai rolar solta...
          Norma é minha companheira, desde sempre. 
          Crescemos juntas, unidas, amigas e irmãs.
          Desde a mais tenra idade, nossos nomes soavam sempre juntos: Norma e Sônia. Quem chamasse a Norma, também chamava a Sônia  e vice versa, e podia ouvir a resposta de uma delas, uma respondia pelas duas. Éramos, como se dizia na época, carne e unha.
          Estudávamos no Colégio São José e, se não íamos juntas à escola, por estudarmos em períodos diferentes, nada nos separava em casa. À tarde, nos fins de semana, líamos romances da Biblioteca das Moças, uma delícia que forjou nosso romantismo. E, aos domingos, era fatal a matinê do cinema com seus seriados que sempre terminavam em cenas escabrosas de suspense e de terror: tetos e paredes de aço, os primeiros abaixando e as segundas, aproximando, espremendo o herói, que parecia não ter escapatória. Um sufoco, com gritos dos espectadores.
         Íamos ao Cine Bauru, e era a  Nilce, nossa chefe, que nos levava e nos tirava de apuros.
          Norma nasceu depois de uma tragédia na família: a morte do Tio Sêmi, único irmão varão de nossa mãe. Só Deus pra proteger Sálua, grávida e seu bebê. O desespero dela parecia não ter fim, como nunca teve. Chorava noite e dia. Cobriu-se de preto. Interpelava Deus por tanta tragédia em sua vida Com sete anos, órfã de pai e mãe. Sobraram-lhe da família as irmãs, que moravam na Argentina, e o irmão dedicado, honesto e trabalhador que escolhera viver  em Piratininga,  para que a irmã não se sentisse abandonada. Desgraçadamente, ele partiu cedo da vida. (Há três versões sobre sua morte: A primeira é que morreu vitimado por tifo. A segunda, é que foi agredido, em seu posto de gasolina, por um freguês de origem japonesa, incidente que o deixou deprimido e inconformado. A terceira, contada por Alice, foi que, em seu armazém comercial, as sacarias caíram sobre si. Ninguém nos pôde informar qual a versão verdadeira. Compartilho a história que ouvi de minha mãe, que é a soma das duas primeiras versões)
               Mas o que é importante narrar é que a morte de Sêmi arrebentou o coração de Sálua. Era ele daqueles irmãos solícitos: sempre presente, sempre amoroso e dedicado à família. Era padrinho de alguns sobrinhos, acho que dos manos Nelson e Wílson, e tanto era amado quanto amava esses pequenos. Sua morte prematura foi uma tragédia na vida da irmã.
             Ao cabo de longos meses, Sálua não abandonava o luto. Alfredo também sofrera muito com a perda do cunhado, primo e amigo. E afligia-se por ver o estado de tristeza febril em que estava reduzida sua esposa. Sentiu que era necessário um verdadeiro choque pra que ela parasse de chorar e se preocupasse com o nenê que logo viria ao mundo.  Numa manhã, em que Sálua saíra pra levar os filhos à escola, Alfredo foi ao quarto conjugal, pegou todas as roupas pretas de Sálua, levou-as ao quintal e, num tambor, ateou-lhes fogo. 
          -- Sálua, disse-lhe ele, quando a viu chorar. Você está esperando nosso oitavo bebê. Você não pode continuar com essa tristeza, que poderá prejudicar nossa criança.
          Sálua, aos soluços,  compreendeu e aceitou. Viu o quanto a amargura lhes seria prejudicial. Acalmou-se, pouco a pouco, e, num clima menos dramático, os últimos meses de gestação foram vividos.
           Deus é maior que tudo! quando Norma finalmente nasceu, todos perceberam por que era ela tão linda e tão graciosa. Viera pra trazer a alegria, o amor, o sorriso pela vida. E Sálua pôde, enfim, voltar a sorrir. E Sálua nem poderia supor quanto essa garotinha iria alegrá-la e fazê-la rir. 
          Norma passou seus primeiros anos em Piratininga.
          Quando mudamos para Bauru, Norma, agora em idade escolar,  foi matriculada no Colégio São José. 
          Um dos momentos em que Norma, ainda nas primeiras séries do primário, se sentia a dona do mundo era quando Alfredo a levava ao colégio, cedinho. Era para a aula de Educação Física. Iam de mãos dadas, o colégio era tão perto, mas, às seis horas da manhã, a rua era deserta e papai levava seu tesouro, com o maior carinho, até ao portão da Gustavo Maciel, o portão dos alunos. Melhor dizendo, das alunas. Ela se orgulhava deste pai, alto, de olhos profundamente azuis, de porte atlético, um vencedor, e, acompanhada por ele,  sentia-se a pessoa mais segura do mundo.O trajeto era curtíssimo, uma quadra e meia, apenas, da Rua Cussi Júnior 11-40. Ela preferiria que fossem quilômetros.
          Paralelamente aos estudos no Colégio São José, Norma foi matriculada no  Conservatório Dramático e Musical de Bauru, no curso de piano. Estudou por quatro anos e, quando foi aprovada , para o quinto ano, resolveu desistir. Meus pais prefiririam que ela concluísse o curso, pois faltavam apenas quatro anos  As irmãs mais velhas também tinham estudado piano, por uns anos,  e, depois, pararam. (Como narrou Mário de Andrade, naquela época todas as meninas estudavam piano. Pobre professor Mário de Andrade! Ainda mais se ele tivesse sido meu professor!) 
         
          Desde cedo, Norma sabia o que queria da vida.Era alegre, esportiva, risonha, espirituosa. Pediu ao pai uma bicicleta e ele, fazendo uma exceção ao controle de gastos, a presenteou com uma Calói feminina. Ah, ela iria, nos desfiles cívicos da cidade figurar no pelotão mais desejado, cobiçado e invejado da escola: o das ciclistas. Com seus vivos olhos castanho-claros, os cabelos, em suaves anéis, ao vento, a pele clarinha e corada, o rosto bem feito e gracioso e, com muita ,brejeirice, guiava sua Calói. Sainha branca, pregueada, com comprimento um pouco acima dos joelhos, blusa branca por baixo da saia, deixando à mostra a cinturinha fina. Meias soquetes  e keds brancos.No pelotão mais interessante, era ali que ela quisera estar. E estava! Iam a pé marchando e, com um braço guiando a bici.
          Adorava pedalar, pelas ruas de Bauru, não tinha receio de nada. Anos mais tarde, combinaria com sua turma do Curso Normal  ( Magistério) pra passearem de bicicleta: Conceição, Daguinha, Maria José, Maria Lúcia, Niceia  e Norma. Saíriam da  Avenida Rodrigues Alves e subiriam, céleres e felizes,  às gargalhadas, a Rua Saint Martin, atraindo os olhares das donas de casa, dos transeuntes e, principalmente, conquistando os galanteios dos rapazes bauruenses.
           Norma sempre estudou no Colégio São José: : primário, ginasial e Curso Normal.
          A turminha da Norma do Curso Normal era vibrante, alegre, dona do mundo, como a mocidade costuma ser. Uma delas, a Maria José, a Mazé, tinha acentuada veia literária. Havia escrito uns romances românticos, ao estilo da Biblioteca das Moças, histórias ambientadas em cidades famosas dos Estados Unidos e, fiel à sua escolha, os protagonistas tinham nomes americanos. Esses romances, escritos, com letras grandes e claras, em cadernos brochura, passavam de mão em mão. Eu também os lia e os apreciava. (Imagino que os poemas de Gregório de Matos Guerra tivessem o mesmo caminho: copiados e passando de mão em mão.) Nem me sai da cabeça aquela letra, bonita e forte. Em homenagem às colegas do curso e amigas, a romancista, que também fazia versos,  compôs uma trova para cada uma delas; Para a Conceição, para a Maria Lúcia e para a Norma, lembro-me bem das letras, acompanhadas de uma musiquinha bem entusiasmada.


“Tem Conceição,
A ingênua da turminha,
Mas, ao se falar no E,
Ela fica sabidinha”

“Tem Maria Lúcia,
Que já provou ser mulher,
Entre o Almir e o Cristóvão,
É o Flávio que ela quer.”

“Tem Norma Neme,
Um caso bem curioso,
Gosta de um tal de M
 Um M misterioso.”
            As letras se referiam aos primeiros flertes da mocidade. Rodeada de amigas e primas que a adoravam, ia para o Curso Normal (assim se chamava o Curso de Magistério) abraçada com elas, risonhas, trocando segredinhos.
          Ione foi, entre todas as primas,  a mais presente em nossas vidas. Por estudar no Colégio São José, embora morasse em Pederneiras, ficava muito tempo em nossa casa. Esse fato alicerçou nosso amor familiar. Norma e Ione eram muito unidas, porque tinham afinidades sem fim. As duas eram muito alegres - e o são até hoje. - e divertidas. Ainda que Ione fosse da minha faixa etária, era com a Norma que combinava mais. E as duas se pareciam como gotas d'água, no espírito de humor e na energia.  E eu as seguia com o olhar, porque não escolhera o Magistério. Era outro meu caminho 

          Foi com Maria Conceição, prima e amiga, que Norma  aprendeu a tocar violão. Aprendeu rapidamente e passou a cantar as músicas em voga. Era uma delícia ouvi-la, aos domingos, após o almoço, acompanhando-se ao violão, comprado com nossas mesadas.
          Maria Conceição trouxera pra nossa casa essa paixão por violão. Ela cantava muitas músicas e, uma delas era um fado. Tinha uma letra apimentada, que nos fazia sorrir e nos ruborizar. Imaginem que havia a palavra amante!! Não que Conceição fosse mais atirada. Absolutamente! Era ingênua e tímida também, com um sorriso que desarmava qualquer mau pensamento, Só que a palavra amante, na época, era carregada de ideias de volúpia, luxúria, sexo. "Queres que eu seja tua amante", cantava nossa querida e linda prima. E nós trocando olhares, chocadas, ao mesmo tempo, divertidas com a palavra. Enfim: uma palavra censurada de ser pronunciada em voz alta, quanto mais cantada.
          Norma logo aprendeu a acompanhar-se ao violão e quantos momentos foram encantados com o som de sua voz, aos acordes desse instrumento. Eram  Nelson, Wilson e ela cantando as músicas do momento e eu, ao piano, tocando as músicas do meu curso.( Sempre sem graça, hahahá!) 
      
           Quando só estávamos nós duas, colocávamos uns long-plays na vitrola e ficávamos ouvindo e sonhando. Tito Madi, ( ah, este disco foi o primo apaixonado quem lhe deu)  Roberto Carlos, Peninha, Peri Ribeiro, Chico Buarque, Nelson Ned, boleros, sambas dor-de-cotovelo... Adorávamos! E cantávamos junto.
         Norma era mais que uma linda moça. Além da beleza de boneca, boneca cheia de graça e cheia de espírito de humor, tem aquele it, que a faz ser notada onde quer que esteja. Charmosa, engraçada, misteriosa também. Parecia ligada a um ímã. Um magnetismo que só ouvi falar em romances que li. 

     


(A bordo do Provence, era mesmo a própria Debora Kerr!)

          Divertida,  espirituosa,  bem-humorada, muito feminina. Sua presença alastrava um clima de bom humor e de positivismo. Fazia-nos gargalhar com suas tiradas. Agradeço a ela ter ouvido as mais gostosas risadas que mamãe deu na vida. Eu até que tentava ser um pouco humorista, com o que me acontecia. Mas nunca provoquei em quem mais amava, minha mãe, um ataque de riso, como os que a Norma conseguia, com sua veia hilariante. Ela e Nelson eram os mais divertidos da família. Ninguém que estivesse perto deles podia conter as gargalhadas..
          Houve uma noite, em que estávamos na cozinha e eu tomava um copo de leite. Não sei o que Norma falou de tão engraçado. Comecei a rir incontidamente e o leite engolido com as risadas seguiu estrada equivocada.  Resultado: engasguei de um jeito tão infeliz que não conseguia voltar ao normal. Tossia, perdia o ar, e meus olhos, encobertos pelas lágrimas, pediam socorro, já me sentindo às portas do inferno, porque aquela aflição só poderia ser proveniente desse lugar execrável. Foi aí que o Labib entrou na cozinha, viu a cena e não teve nenhuma dúvida. Deu-me um murro nas costas que, se não me matou, pelo menos atingiu o objetivo: desengasguei.  Norma caiu na gargalhada. Eu, nem sabia se ria ou chorava. Enfim, saíra do Inferno de Dante. Vai ver que a porta de entrada é desse jeito. Narrei esse episódio só pra terem ideia de como Norma era cheia de graça.  De tanto rir, eu engasguei e quase morri. Seria morrer de rir literalmente.
          Depois do Curso Normal, Nassib desafiou Norma a passar no Vestibular. Ela aceitou o desafio e saiu-se muito bem. Vencera a aposta. Mas não era por aí que Norma queria trilhar seu caminho.
          O talento e a disposição da Norma eram dirigidos ao lar. Não pensava em trabalhar, lecionar, não. Queria mesmo era ficar em casa, ajudar a mama aos domingos, com o almoço. E namorar. Seu sonho era casar-se com um grande amor. Lógico, ela sempre estava rodeada por algum admirador. Sempre houve alguém apaixonado pela Norma. A pergunta na época seria: “ Quem vai ficar com Norma?”  E.a família toda era louca por ela. Sabe aquela história de “ mamãe passou açúcar ni mim...” pois a Norma é a concretização plena desses versos.

          II-   Born to drive

          O temperamento de Norma era na juventude ( e continua agora)  tão positivo,  alegre,que vai daí que todos a amavam, todos a amam. Sua voz  é quente, sem ser muito grave. 
          Norma era a irmã com quem Nilce gostava de sair e de conversar. Renée também tinha um fraco por ela. As duas muito animadas e com aquele astral alto só poderiam ser amigas. O Nassib tinha predileção por Norma, uma grande afinidade os unia. As sobrinhas também a adoravam. E eu, por ser poucos anos mais nova, a sentia como meu ídolo. Nunca a tomei como modelo, porque sempre compreendi que meu jeito era diferente, jamais poderia ser pautado na personalidade de minha irmã. Norma era expansiva, eu bem tímida. ( Ainda tenho sequelas dessa doença). Ela era linda, eu, razoável. Ela gostava de dançar, eu, de ler. O dinheiro dela dava cria, o meu, evaporava.  Ela adorava e adora dirigir, e eu só dirijo, quando não posso delegar esta tarefa. E por aí vai. Não admira que nunca tivesse passado pela minha cabeça imitá-la. Ou seguir seus passos.
          Pra Norma fui a amiga, a confidente, a conselheira, e, embora fosse eu a caçula, muitas vezes me sentia como se fosse sua mãe. Outras, lógico, o papel era invertido. Éramos irmãs, amigas,conselheiras, a um tempo mãe e filha uma da outra. Se uma sofria, a outra chorava. Se uma ria, a outra já gargalhava. Siamesas? Quase.
          Saíamos juntas para o cinema, para as missas das 5 horas, na Igreja Sta.Teresinha, e, raramente para o aperitivo dançante dos domingos, no Tênis. (Raramente porque ajudávamos nossa mãe a preparar o almoço de domingo )  Às vezes, Norma achava um pouco injusto. Nossas amigas iam todos os domingos ao Aperitivo do clube, onde se dançava antes do almoço. Mas isto de reclamar era raro. Não conseguiríamos deixar de ajudar nossa mãe, com as  trabalhosas comidas árabes de domingo.

       
          Quando comprei meu primeiro carro, um Gordini, marrom, cor de chocolate, Norma é quem o dirigia. Aprontamos muito, nesta época. Eu tinha o carro e não tinha carta de motorista. Mas assim mesmo dirigia. Ela tinha carta e não tinha carro. Fugíamos dos guardas de trânsito, mas nem sempre dava certo. Alguns nos paravam. Mas, na hora de conferir os dados da carta e os dados do carro, nós duas os embananávamos. Norma dizia ser Sônia e eu dizia ser Norma. Em geral, eles engoliam a nossa história. Mas houve um guarda. tão engraçado... ele nos olhava, olhava a carta, olhava pra cada uma, como se um anjo o avisasse do embuste. Afinal, ele nos liberou. Pra nossa surpresa, despediu-se, dizendo o nome real de cada uma das farsantes, olhando nos olhos da verdadeira Norma e nos da verdadeira Sônia. O que nós gargalhamos depois, surpresas pela percepção dele. Nosso teatro, com ele, não surtira o efeito desejado. Mas adoramos a abordagem e nunca o esquecemos. 
         
          Às vezes, Norma caía em alguma tristeza ou melancolia, cujas causas a mana aqui nunca soube definir. Tentando distraí-la, eu a convidava pra sair de carro e, lógico, ela dirigia.(Ah, quem ensinou Norma a dirigir foi Alfredo, com sua visão moderna do papel das mulheres no mundo.) E , ao volante, pouco a pouco, ia-se libertando dos maus pensamentos. Rodávamos pelas ruas do centro, Rua Batista, Rua Primeiro, Avenida Rodrigues Alves. Conversas se entrelaçando, casos esquecidos, ou hilariantes. Quando voltávamos pra casa, já as nuvens escuras tinham desaparecido e, em seu lugar, o sorriso iluminado de minha irmã. Não sei o que fazia tão bem a ela: dirigir ou deixar rolar conversa louca.  De uma coisa tenho certeza: se tivesse que lhe dar um epíteto, um aposto, seria:: Norma, born to drive.
          Nesta época do Gordini, o Labib morava em São Paulo. Algumas vezes, Norma e eu nos aventurávamos na estrada de Bauru-São Paulo, íamos pela Castelo Branco.  Nossa mãe, com olhos de preocupação, nos aconselhava com "Cuidado!" "Devagar!"  Mas nosso pai intervinha: 
          -- Sálua, fale só: "Vâo com Deus!"
          Minha mãe completava:
          -- E façam o Sinal da Cruz!
          Esse jeito de Alfredo e Sálua era como se fosse uma injeção de segurança e de alegria. Todas as nuvens de medo ficavam extintas. Em seu lugar, olhos seguros, sorrisos confiantes. Sinal da Cruz três vezes. E lá íamos enfrentar a estrada que nos ligaria à capital do estado.
          Sem medo, vencíamos os 340 km( nunca tive boa memória para números)  de asfalto. Sempre Norma ao volante, muito segura de si. 
          Numa dessas viagens, estávamos hospedadas na casa do Labib e Evelyn e fomos passear pelas ruas do centro paulistano. Sem mais aquela, sem nenhum aviso de que haveria borrasca, começou a cair um temporal violento. Em coisa de minutos, as ruas se encheram de água, de lodo, de enxurrada. Quando demos pela coisa, estávamos descendo a Avenida São João, e paramos no sinal. E lá embaixo, uma inundação de dar calafrios de medo. Todos pararam no sinal vermelho e, quando deu o verde, todos continuaram parados. Um afoito acreditou no seu possante, arrancou e foi na cara dura vencer as águas. Pobre ilusão! Nem bem se atirara às águas daquele rio de lama, lá ficou ele, com água até as portas, afundado, mas forçando o carro a fazer o impossível: andar na água. Foi um exemplo muito didático do que não se deveria fazer nestas circunstâncias. Atemorizadas, Norma e eu percebemos que ficáramos sem caminho de volta: todos os nossos trajetos estavam submersos pelas águas. Não havia jeito de voltar pra casa do Labib. Ruas, casas, praças inundadas. Um terror nos dominou. Estávamos na Av. São João,  lá  no lugar de onde se vem dos lados da 25 de Março. Naquela descida. À frente, águas nervosas e em ascensão. Carros brecados na ladeira. Outra vez sinal vermelho, depois, outra vez, o verde. Desta vez, ninguém avançou. Um doido deu o balão e voltou na contramão. Nós, muito ajuizadamente, o seguimos. Norma, séria, compenetrada, na direção. Eu, de copiloto, pouco adiantava à minha irmã. Fomos na contramão, abaladas, atemorizadas, estremecidas, trêmulas de pavor, silenciosas .(Em Bauru não tem disto não! Naquela época!) Entramos pela Rua 15 de Novembro. Na contramão, lógico. Só assim poderíamos encontrar um caminho de volta. Um guarda nos parou: e, naquele caos que estava a cidade, nem se lembrou de nos multar. Só avisou pra sairmos da contramão. Foi aí que a presença de espírito da Norma descortinou a melhor resposta, a melhor saída, o único modo de chegarmos à casa do Labib:
          --. Foi o guarda de trânsito que nos mandou seguir por aqui . 
         E o guarda nos deixou continuar. Passando pela contramão, continuamos até atingir as vias que poderiam nos levar ao nosso destino.. Perguntando, evitando as ruas inundadas, segundo as informações que obtínhamos, (o Wase  da época eram as bocas) fizemos um trajeto louco, por desvios , até chegarmos à casa do Labib e da Évelyn.. Saímos do carro, cambaleantes mas vitoriosas. Não é qualquer um que vence as inundações de São Paulo e com um Gordini! 
          No dia seguinte, bem cedinho, voltamos pra Bauru. Ufa! Foi por pouco que não ficamos, Norma, eu e o Gordini, submersos naquelas ruas que mais pareciam rios caudalosos.

           III- Anos Dourados

           Norma era vaidosa e moderna. À tarde, uma vez por semana, vinha a nossa casa uma manicure, de origem japonesa.  Aos sábados, de manhã, Arminda, uma jovem alta, magra e chistosa,  prendia nossos cabelos com bobs. Mas nós é que os soltávamos e os penteávamos. Norma ficava linda, com os cabelos arrumados naturalmente.E o principal de seu rosto bem desenhado eram os olhos: cheios de luz, de vida, de energia. Mergulhar neles é saber um pouco de sua alma, dedicada, amorosa, sincera, autêntica.

          Em geral, às tardes de sábados e domingos, conversávamos com mamãe. As gargalhadas se sucediam. Minto: minha mãe não gargalhava. Sorria e ria, mas gargalhar, não! Positivamente, não! Norma inventava cada história! E havia, entre nós, uma união, um amor tão grande,um clima de cumplicidade, que nos autointitulamos As Três Marias. Toda vez que, de repente, nos víamos juntas, falávamos em coro:
          -- As Três Marias! 
          Em alguns fins de semana, íamos a Pederneiras, visitar nossos tios e primos.Tio Adib, Tia Olívia, e os primos Ione, Humberto, Adalberto, Ivani, Maria Ivete, Adibinho, Gilberto. Na estrada, Norma e eu íamos cantando, o que fazia a alegria de nosso pai ao volante.e de nossa doce e inigualável mãe."  Papai é o maior/  papai é que é o tal" Além de afagarmos o ego paternal, também cantávamos as músicas mais famosas de carnaval. Havia um mix de músicas brasileiras, que, cantadas formavam uma comédia, que terminava com a marchinha: " tome, que o filho é seu" e, depois: "Ninguém me ama". Risadas garantidas.
          Os domingos na casa de Tio Adib eram alegres, cheios de risos e de amor. Nossos tios tinham carinho especial por nós. A voz de Tia Olívia poderia ser classificada como? Soprano? Era uma voz clara e alegre, esparramando risos, alegria e amor. Os dois irmãos, Alfredo e Adib, se tratavam com tanto respeito, admiração e carinho, que fico emocionada ao lembrar. As duas cunhadas eram unidas por um passado comum, em que viveram na mesma casa e onde Sálua enfrentava as implicâncias de Fahda a fim de proteger Olívia, recém-casada. Nossos primos eram nossos outros irmãos. Nunca a sombra de um ciúme ou inveja pairou sobre nós. E, como a Ione estudasse em Bauru, e, durante a semana, muitas vezes, dormisse em casa, nosso relacionamento com ela era perfeito, como se fôramos três irmãs. Ivani, a prima do meio, cujos dotes focalizavam o lar,  cortava os tomates com uma destreza nunca vista, acompanhada de nossa estupefata admiração. e Maria Ivete, animada, divertida e carinhosa,  nos contava piadas, que até agora estão na memória, com as gargalhadas de outrora! Queridas e queridos. Sobre o Humberto, já falamos que era um irmão para todos nós. E casou-se com nossa amada e encantadora sobrinha,Lucy Miriam, cuja participação no Baile das Debutantes fora publicada em jornal como " entre as belas, a mais bela."
          Íamos Norma e eu a todos os bailes famosos do Tênis. Os do Carnaval então eram tradição em nossa família. E nossa mesa na galeria também. Meses antes dos dias de folia. havia muita disputa para escolha das mesas.. A fila dos associados. era imensa. Íamos cedo pra poder escolher entre as mesas bem situadas, com vista panorâmica.  Em geral, Norma reservava a  mesa da galeria, na primeira fila: eram camarotes, que ficavam no andar de cima do salão. De lá, dava pra ver todos que dançavam, chegavam, saíam, se embebedavam, caíam, cheiravam lança-perfume, choravam, riam, gargalhavam e pulavam,subiam nas cadeiras, um carnaval muito animado e alegre! Descendo as escadas das galerias, ia-se pro salão. Ninguém ficava parado, com as marchinhas de carnaval. E com a animada orquestra do Tâmbara (dono de orquestra e da ótica mais famosa da cidade). O toque gelado de lança-perfume na pele indicava que alguém queria paquerá-lo, ou paquerá-la. O pior era quando erravam a pontaria. Nos olhos era o inferno! (Como sempre, a boba aqui nem entendia por que os meninos mais tolos punham lança-perfume no lenço e ficavam com ele enterrado no nariz, com olhos esquisitos. Era o começo da drogaria.)
         Em qualquer baile, fosse carnaval ou não, Norma sempre era um sucesso. Uma boneca. Linda, risonha, espirituosa, educada. Perfeita. Sempre vestida com roupas que realçavam sua graça natural. Tudo ficava lindo nela. Aqueles vestidos acinturadinhos, as saias volumosas, um charme só. Das lindas roupas que Norma teve, lembro-me bem de um vestido vermelho de tule, que a deixava mais formosa que nunca. Fomos a um baile no Automóvel Clube e minhas amigas do colegial, que só a conheceram nesse dia, ficaram admiradas de sua beleza. Uma delas disse:
          --“ É uma boneca mesmo."
          À noite, antes de dormir, Norma e eu trocávamos confidências ou sobre o dia, ou sobre o baile, ou sobre o cinema. Norma sempre era a primeira a falar. Contava tudo, com aquela graça, e eu, entusiasmada, acompanhava cada passo da narração com os olhos bem abertos e com a imaginação a velas pandas. Narrava cada passagem com pormenores temperados com sua vivacidade e presença de espírito. Ríamos deliciadas. Quando acabava o relato, era a minha vez de contar as impressões do dia. Ou que as coisas não fossem tão divertidas, ou emocionantes, fosse que meu relato saísse fastidioso, Norma dormia antes que eu começasse a terceira frase. Eu, simplesmente, queria acordá-la, aos berros. Sacudi-la freneticamente. Não fazia uma coisa nem outra. Uma amargura descia à minha alma, virava-me na cama e engolia o sapo asqueroso. Injustiça! Mas acabava também por dormir, magoada, é lógico, com o pouco interesse de minha irmã por minhas histórias banais. No dia seguinte, gargalhadas pelo sono que a acomete sempre quando começava a narrar minhas pequenas aventuras.
         No dia da formatura do Curso Normal, estava radiante e animadíssima. Haveria a entrega dos diplomas e um baile. Sua roupa tinha sido escolhida com esmero, com madame de São Paulo e, aliada aos dotes da Norma, fê-la brilhar mais ainda.


         
          IV-  Sonhos de Amor e Amor pra Valer


          O primeiro namorado de Norma foi um primo em segundo grau, advogado. Inteligente, vivo, um tanto velho para ela, mas uma pessoa preparada e com olhos incrivelmente astutos. Parece que, meses mais tarde, Norma descobriu que ele tinha um caso (na época, chamávamos de galho)  e, num telefonema célebre, escutado nos detalhes pela vizinha ( a sala de visitas do vizinho dava pra nossa sala de música, onde estava o telefone; sabe, aquele altinho, com pezinho e bocal, todo preto, e a outra parte parecendo do jogo do bilboquê?)  terminou o namoro quase noivado.  (Diga-se que a vizinha tinha ouvidos mais parecidos com antenas: sabia tudo que rolava em nossa casa. Particularmente revelava um interesse muito grande em nossos namoros). 
         O outro namorado era também parente, feio que doía, e ela cada vez mais linda! (Lembrando o filme em que Sofia Loren, cada vez mais bela, enlouquecia Mastroiani, cada vez mais acabado). Engenheiro. Pouco tempo depois, percebeu que não era o que procurava. E desistiu.
         Havia um engenheiro, amigo do Nassib, que era caidinho por ela. Ia, quase todas as tardes, a nossa casa e passava com ela boas horas, na varanda, conversando e rindo.
         Aos sábados, podíamos esperar que certos amigos do Nelson passassem em casa, um deles fascinado pela Norma. Que olhares melosos ele lhe dirigia! Havia um patrício nosso, de Pirajuí, que vivia cortejando-a e visitando-a. E outro, naturalmente também patrício, que  se encantou pelo seu ar de princesinha amada.  Outro ( novamente patrício) de Bauru, magro, muito magro, a vida toda foi apaixonado por ela, mas sempre rejeitado, sabe-se lá se foi por causa de tanta magreza. Enfim, pra onde quer que você olhasse, havia um admirador da Norma.
          Numa noite de verão em Bauru, Norma, após a sessão de cinema, voltando pela Batista de Carvalho, conheceu um moço, patrício  (É incrível como Norma atraía os patrícios.) Ficaram conversando, afastando-se das companhias. Revelava-se uma forte afinidade entre eles. De repente, aparece o Nassib, ao volante, para o carro ao lado e mui gentilmente, com voz de barítono num épico:
          -- Entre!- abrindo-lhe a porta.
         Nassib, que  aceitava a corte que diversos amigos faziam à irmã, só porque não conhecia o rapaz, fez esse bonito papel em pleno coração da Batista de Carvalho. Norma chorou aquela noite, mas Nassib nunca foi de pedir desculpas.E aquele que poderia ser um romance acabou por ali.

      .   Norma tem muitas qualidades herdadas de mamãe. É muito inteligente, intuitiva. E é muito perspicaz. Num olhar, capta o clima de uma reunião. E sempre consegue realizar seus planos,porque é tenaz, positiva, e de personalidade encantadora. 

          Norma tem um coração familiar. Todos cabem ali. E os defende como uma leoa, sem medo.
         
         Na época  mais linda de nossa mocidade, aconteceu  o casamento do Labib. Os preparativos foram os de sempre, roupas, bolsas, joias, perfumes, maquiagem.  O casamento seria realizado em São Paulo, como já foi narrado no capítulo do Labib.
          A título de lembrança, copio a parte a compra dos tecidos.
      "Nossos pais nos trouxeram a São Paulo para comprarmos os tecidos dos vestidos para a festa. Lembro-me muito bem: meu pai ficava sentado, ao lado do balcão, fumando seu cigarrinho de palha, enquanto o vendedor nos apresentava uns tecidos mais lindos já vistos. Era na Ladeira Porto Geral, e a loja fora indicada pela costureira de Bauru, Lílian Pontes, uma das melhores de toda a cidade. ( O meu vestido, com o tempo, sumiu, mas tenho o cinto até hoje. Não era crepe, não era seda, não era tafetá. Era maravilhoso!) O tecido do vestido da Norma era amarelo e, obedecendo ao modelo escolhido, tinha rendas, que também ali foram compradas."
          Chegou o dia do casamento, o salão repleto de pessoas felizes, belas, calculo que havia uns trezentos convidados.
         Durante a festa, um jovem, também patrício, tido como gênio em sua área, interessou-se vivamente por Norma. Infelizmente os olhos de minha irmã estavam já hipnotizados por outra figura da festa: outro patrício, ( AI, meu Cristo!) com aquele tipo inconfundível de “ brimo “, e  que não tirava os olhos dela. Por acaso, era amigo do Armando, este, sim, nosso primo, filho do Tio Sad
          -- Armando, quem é aquela linda garota de amarelo?
          -- Meu querido, é minha prima.
          -- Apresente-me a ela. Quero conhecê-la.
          -- Vamos lá.
          Nem demorou nada e os dois já estavam conversando deliciosamente, com aquele brilho no olhar de quem encontra a alma gêmea. A noite toda não se largaram. E combinaram logo um encontro.
          "Com muito gosto e honra" (minha homenagem às Mil e Uma Noites) Norma "ouviu e obedeceu": era convidada da família da Evelyn a ficar mais uns dias em São Paulo. Era o que faltava pra se verem de novo.

          Nesses dias que se seguiram, houve encontros em que novamente se sentiram perdidamente apaixonados. Conversaram, confidenciaram-se, riram, trocaram carinhos. Ele nem dava  certeza de ir a Bauru. Mas Norma ansiava que esse amor tivesse continuação e que fosse pra vida toda. Olhou ao lado, viu a bombonière, e, num lampejo, tomou dois bombons Sonho De Valsa e:
          -- Você fica com um e eu fico com o outro. Quando você for a Bauru, comeremos juntos. 
          E não demorou muito, lá estava o E... na estrada que o levaria a Bauru. E, na maleta, bem protegido,  o bombom Sonho de Valsa. Foi alegria pura entre os dois, em todos os momentos em que se encontravam. 
          Apaixonadíssimo, encantadíssimo com ela, repetiu a visita em fins de semana seguintes.         
         Num passeio, à tarde, levou-a a um estúdio fotográfico, pra poder ter seu rostinho sempre sob seus olhos. Foi uma fotografia encantada. Parecia que havia um halo de luz em torno do rosto de Norma. c'è l'amore!  


               (Norma, brilhando sempre)

          Eduardo tinha irmão gêmeo idêntico . Certa feita, Norma aguardava, na casa do Sr Said a chegada do namorado. Logo entra o Eduardo, todo feliz, dirigindo-se à Norma. 
          -- Oi, meu bem. 
          -- Como vai o senhor?
          -- Por que está me chamando de senhor?
          -- Porque não o conheço.
          Eduardo, que espreitara tudo, visivelmente feliz, correu, orgulhoso, para junto dela.
         Nunca vi  Norma tão feliz. Ele visitava-a quase que todo fim de semana. Ia tudo muito bem, não fora a oposição da irmã dele a este namoro. Numa destas visitas, houve um motivo banal para a ruptura. Norma caiu doente. Seu corpo todo se tingiu de vermelho, de tanto desgosto. É! A desilusão é vermelha! O amor de sua vida a deixara para sempre. Mais tarde soubemos que o amado de Norma não resistira às implicâncias da irmã sobre Norma e porque, também, havia a sombra de um dote milionário, oferecido por uma amiga da bruxa. Poderia ser esse dote a causa do rompimento?  Um dote, vamos dizer  tipo uma mansão no Jardim Europa? O tino comercial, característico da raça, falou mais alto que o amor que ele sentia por minha doce irmã? Ou haveria outro motivo? 
         Ninguém mais conseguiu fazer a Norma tão feliz, como aquele sheik. Foi uma pena.Um amor de verdade acabar inexplicavelmente. Imperdoável, Sr E...! Sem perdão, Dona Malévola, irmã de E ..., não é assim que se trata um amor sincero.
         Parecia que  seu coração e sua alegria nunca mais  voltariam a renascer.
          Passaram-se os dias. Passou-se muito tempo.A ferida,ainda aberta, doía. Mas Norma não fora feita pra ficar sem um amor: ela era e é amor! Sem que, ao menos, procurasse, os homens sempre estavam ao seu encalço. Resolveu diversificar. Procuraria amar alguém mais velho, com mais opinião.
          Logo apareceu um interessado, muito mais velho que ela, - lógico, patrício --  muito bem situado na vida  e apaixonadíssimo por ela. Mas Norma desistiu a tempo. Surgiu um outro brimo, também velho, também rico, e muito simpático. Ele se casaria com a Norma em dois tempos, se ela quisesse. Mas... aí entrou em cena  um engenheiro – ó milagre! – que não era patrício. Ele era romântico, telefonava-lhe e fazia-a ouvir músicas italianas sentimentais – sucessos na época. Mesmo quando em viagens, não se esquecia do aniversário da amada e, com artimanhas próprias dos dias atuais, no dia D, fazia chegar às suas mãos o seu presente apaixonado. 
O namoro seguiu por um tempo.
         E, numa tarde de verão, aparece, na casa da Cussi Júnior, uma visita. Também era patrício. Seu nome Said  Buzalaf.( Norma deveria ser embaixadora do Líbano) e dobrou o coração da Norma. Era bonito, alto, sério, com um alto senso de humor que poucas vezes deixava entrever
          O namoro começou, com visitas e segredos trocados na varanda. Um namoro para o qual eles estavam amadurecidos  e determinados. A expressividade dela, com sua alegria,  era o reverso da seriedade dele, com seu modo calado de viver. Talvez por isso tenha dado  certo. No lindo mês de setembro, de 1969, casaram-se, numa festa, que reuniu as duas  famílias.

          V-  Vida e batalhas da vida

          Quando solteira, a felicidade dela dependia de nós, sua família. E nossa felicidade dependia de ela estar feliz. Falo principalmente por meu pai, minha mãe e por mim mesma. A adaptação à vida de casada foi difícil, mas seu gênio maravilhoso e sua graça e encanto conquistaram a amizade do sogro e a confiança do cunhado, com quem os recém-casados viviam.
          A chegada da Mirelle deixou todos em estado de graça. Todos os olhares, todos os cuidados convergiam para a linda criança, que recebeu esse nome devido ao nosso ( da Norma e meu) entusiasmo por uma cantora francesa, a famosa Mireille Mathieu. Demos um jeitinho pra não ficar tão francês e pedante. Mirelle soava muito bem! 
          Nos primeiros anos de casados, Said e Norma passaram por graves problemas e dificuldades.  Mas isto é regra na família. Parece que este cardápio azedo da vida sempre nos é apresentado e, mesmo que ele seja abominável, temos que nos servir dele pelo tempo que Deus determinar E foi isso que Norma fez. Soube enfrentar a angústia, o stress, as preocupações. 
          A vida era tão corrida, Mirelle, nem tinha dois anos, e, quando Milena, nasceu, trouxe uma dor constante para Norma e Said: a criança foi diagnosticada com síndrome de Down. Alguém está preparado para isso? Dificilmente.
          O nome Milena foi escolhido para a segunda filha. É claro que a chegada da Milena turbilhonou a  vida da família. Eram cuidados, eram consultas, eram leituras que pudessem encontrar um caminho mais fácil para a criança.
          Nem passou muito tempo e Norma novamente engravidou. Tinha fé, tinha confiança em Deus que essa terceira gravidez lhe traria uma criança maravilhosa e perfeita, como a primeira. Colocou-se confiantemente nas mãos de Deus. Houve um dia em que chegou a sua casa , muito nervosa, chorando copiosamente, porque encontrara uma mãe de criança com síndrome de Down e ela lhe fizera uma pergunta, quase uma crítica: "você não tem medo de ter outra criança com esse problema?"  Não! Ela confiava e sempre confiou em Deus. E a terceira menina, Márcia, veio pra trazer conforto, alegria e mais luz ao lar. O nome Márcia foi sugerido pela tia Saida. Muito lindo, também e começado por M, como Mirelle e Milena.
   
          Norma, nestes dez últimos anos, enfrentou uma batalha terrível: o câncer. Por duas vezes sentiu suas garras e, por duas vezes, o venceu Um linfoma no abdômen, diagnosticado  em 2001.
          Márcia voltava de Londres, onde fora estudar.
          A amedrontadora doença foi um choque para todos, na família: Said, Mirelle e Márcia. Milena acompanhava o movimento incessante de consultas, exames e de explosões de lágrimas. Não entendia, mas, a seu modo, sabia consolar a mãe. Norma fez todo o acompanhamento e tratamento quimioterápico. Em meio a tantos exames, descobriu que tinha câncer de mama. Passou por cirurgia, quimioterapia, radiologia e, pela graça de Deus, teve alta completa.
         Durante o tratamento, Norma brigou com Deus. Não podia crer que aquilo estivesse acontecendo com ela, depois de tanto sofrimento por que já passara na vida. E a doença ainda a atacava não só interiormente como em seu exterior. Cabelos caindo, veias roxas de tanta injeção. E ainda as náuseas. Aquela depressão que a deixava sem viço, sem luz. Entretanto o amor de Deus por ela era o de Pai desvelado e diligente. Como resistir ao apelo do Senhor? De um extremo a outro sentiu-se arrebatada. O grupo de orações do qual ela faz parte deu-lhe força, coragem, confiança. A fé renasceu forte e  a susteve. Com garra de leoa, lutou pela vida, pela sua vida, em torno da qual sua família se desenvolve e floresce.
          Em 2003, quando os tratamentos haviam terminado, e Norma recebera alta, mais um golpe a feriu fundo. Márcia se separou do marido, Mário, que ela considerava um filho. Mas, na mesma época, nascia quem seria a compensação de todas as tristezas: Laila, filha de Mirelle.. 
     

          VI - Notícias          

         Nos últimos anos, quem toma conta das finanças naquela casa é a Norma. Eu sempre soube que ela se daria bem nas finanças: costumava dizer-lhe, quando a minha mesada se volatilizava e a dela estava ainda intacta: 
          -- Norma, seu dinheiro dá cria!
          A vida matrimonial e a fragilidade da saúde do Said a conduziram aos seus talentos natos: administração e finanças. Forte e segura, rege os destinos da família.
         Há alguns anos, Said entregou sua alma a Deus. Cumpriu seu papel de marido, e de pai, lembrando também que foi um filho compreensivo e dedicado para um pai rigoroso.           
        Mirelle é simplesmente encantadora, advogada brilhante, professora acadêmica, espirituosa, incrível .Seus alunos aprendem rindo, divertindo-se com as tiradas surpreendentes que ela, com sua inteligência privilegiada, inclui em suas teses docentes. Karen só tem uma queixa, quando viaja com ela: fica com o maxilar doendo de tanto rir. Já confessei a Mirelle: um dia quero assistir a uma aula sua! Deve ser inesquecível.Uma aluna escreveu-lhe: "todo aluno tem o direito de ter uma excelente professora como você."
         Márcia, jornalista, de vocação imperiosa, fascinante, apelidada pelos alunos de deusa árabe, de beleza exótica e de uma retidão moral de que não encontro paralelo ( o Mário que o diga!). Professora acadêmica, também. Escreve, como não poderia deixar de ser, com um estilo sincero, apaixonado, emocionante  e também  divertido, que nos aprisiona desde as primeiras linhas. Como a irmã, seus alunos a têm como modelo. (Benditos professores que são inspiração para os alunos!)
          E Milena? Ela trouxe ternura. Ama a mãe, com aquele profundo sentimento dos que não podem usar as palavras, mas que fica patente no olhar sentido, no modo de lhe fazer companhia, ora assistindo aos jogos do Santos, ora, quando a Norma ficou doente, deitada com ela, quietinha, que não era hora de dar chiliques. Norma  desvia seu pensamento de tristezas para rir das criancices que com ela, Milena, apronta. Nos intervalos de novelas, quando o ritmo quente de música arrebenta as paredes e contagia o coração, Norma se atira à atônita Milena e dança com ela, mesmo que tenha que chantageá-la: “ se você não dançar comigo, não vai ganhar sua coca no fim de semana.” E ela dança com a mãe, rindo, divertindo-se com a alegria da dança.
          Mirelle, Márcia e Laila são pra Milena o maior encanto na vida, 
          
          Milena faz da vida de Norma céu e inferno. Por ter perdido a visão de um olho e enxergar pouco do outro, tem uma vida muito limitada, agravada também em virtude do grau da doença. Certa feita, procurando uma orientação para o tratamento de Milena, Norma viajou, de ônibus,  ao Rio, atrás de especialistas na doença. Durante o trajeto, Milena pôs à prova toda a paciência e dedicação de Norma, a ponto de, no final da viagem, um senhor, aproximar-se dela, estender-lhe a mão e dizer--lhe, com lágrimas nos olhos:
          --“ A senhora já ganhou o céu!”  
          Mas Milena também já ganhou o céu. Vivendo uma vida tão difícil, o grande amor é a mãe. A ela dedica seus melhores carinhos. Apesar de tantas limitações físicas, e neurológicas, Milena é tão carinhosa, que emociona. Quem ao lado dela fica, se sente tomado por uma ternura diferente, pura. E é retribuído pelo coraçãozinho mergulhado em impotências físicas, mentais e onde sobeja amor. 
          E há alguém que traz alegria, luz e calor ao coração de Norma: é Laila, sua amada neta, que dorme abraçada à avó, quando vai a Bauru. Há entre elas uma ligação tão forte, tão única,que uma pensa na outra com confiança, orgulho e amor infinitos. Uma bênção ter uma neta assim. Uma bênção ter uma avó assim..      
           Os anos passam e Norma continua elegante, espirituosa e dedicada. Na festa de 50 anos de formatura do Curso Normal, foi uma das mais admiradas. 
         Há alguns anos, voltou a se dedicar à música. Toca teclado divinamente e já constam em seu repertório mais de 150 músicas .É seu relax, sua terapia.

          Norma sempre foi a mais linda flor de nosso jardim. Quando ouço Roberto Carlos cantar aquelas palavras  Eu já não posso mais. / olhar nosso jardim/ Lá não existem flores/ tudo morreu pra mim... " palavras que ferem fundo, lágrimas vêm aos meus olhos. Saudade dela, de seu riso delicioso,de dentes alinhados perfeitamente, choro de saudade dela, de nosso passado tão feliz. Atualmente moramos distantes e aquela convivência de nossa vida na Cussi Júnior, 11-40, ficou na lembrança e no coração.  A sua natural alegria fazia-a brilhar, iluminar a vida de seus amigos e encantar os dias de seus familiares.  

        .
         (Norma e eu continuamos com a mesma união, com o mesmo amor)




          
         Suas irmãs sabem que sempre podem contar com ela. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Assim foi com Alice, com Nilce, com Lenita. Ela fica ao nosso lado nas festas e ao nosso lado no leito. Caráter! Coração! 
          
         Olhos brilhantes, coração caloroso, alma cheia de fé. Norma, seu nome chega-me como se fosse o de minha primeira filha. Tenho muito medo de ficar lelé e chamar a Karen de Norma, porque, em meus sonhos, vocês são uma só. Embora eu seja poucos anos mais nova que você, sempre lhe dediquei um carinho materno. Talvez isto explique a unificação entre vocês duas, minha irmã e minha filha. Quando acordo, às vezes não sei se sonhei com minha filha ou com minha irmã.
          Encontrar Norma é  sentir nos olhos o brilho do sol da manhã. 
          Um coração  voltado para o bem, para o belo, para o o amor. É a melhor irmã entre os nove filhos de Alfredo e Sálua. (Mas tem seus pecadilhos, entre eles o de dormir enquanto narro minhas histórias. Imperdoável, Norminha!) 
          Energia, alegria, carinho! Luz!
          Que Deus lhe dê felicidade e  saúde, tudo junto e misturado com muito amor e paz. 

          “Luminosa manhã,
          Tanto azul, tanta luz,
          É demais pro meu coração!”