segunda-feira, 6 de junho de 2016

55 - Sete anos de mestra Sônia servia..

55 - Sete Anos de Mestra Sônia Servia...

       Meu tempo de Iacanga ia-se esgotando. Não me sentia bem na diretoria.  Ansiava por voltar às minhas aulas, aos meus alunos.
       Quando abriram as inscrições para o Concurso de Remoção, nem pensei uma segunda vez. Inscrevi-me.

       Logo chegou aos meus ouvidos a notícia muito alvissareira de que uma professora de Português do Morais Pacheco iria se remover. Haveria, portanto, uma vaga nessa escola tão seleta. Apontei minhas armas para lá. Se caso não fosse possível,  ficaria mais um ano em Iacanga, rezando para que um diretor assumisse a escola amada.
       Gente, foi um filme de suspense o dia da remoção. Ninguém tinha ideia de onde poderia cair. Precisou que todos fizessem sua opção e, depois, começasse tudo de novo, com as novas vagas deixadas. Nunca pensei sofrer agonia igual, tendo que fingir que não estava nem aí, se não conseguisse. O pior: a professora , que deixaria a vaga, fazia mistério, querendo vender-me seu lugar. Logo vi que ela sairia de qualquer maneira. Mas como ela fazia mistério e suspense, tentando ganhar uns cobres, eu não poderia ter certeza de nada.
       Resisti estoicamente às investidas interesseiras dela. Deus no comando. Não deu outra: a mafiosa deixou as aulas, que, na nova chamada, passaram a mim. Sabem? Foi a primeira e( coisa rara) professora mau caráter que encontrei. Imagino esse traste num cargo de primeiro status na educação. Lixo!
      Comecei meu pastoreio de sete anos no Morais Pacheco. O que dizer dessa época? Alunos interessados, estudiosos, dedicados. Era uma delícia estar com eles. Se algum se ausentasse em duas aulas seguidas, eu ficava doida.
       Meu querido aluno Antônio Thomasi, de repente, parou de frequentar a sexta série. Eu não podia acreditar. Não ele! Não esse ótimo aluno, de letra desenhada e uniforme. Mandei recados, comentei na sala de professores. Mas não houve jeito. Antônio se transferira para o curso noturno. Iria trabalhar  com o tio.
       No dia dos professores, em plena comemoração com a classe de que eu era a orientadora,  recebi uma carta dele. Chorei como só pode chorar uma professora que vê seu aluno de talento se distanciar de seu grande objetivo. Mas, não! Sua carta me garantia de que continuaria perseguindo seus objetivos e que os sacrifícios o fariam crescer. Nossa! Ele era o adulto e eu a criancinha chorona. Seus colegas me consolaram. Temia por ele. Temia que, estudando no período noturno, o estudo fosse menos rigoroso. Que exigisse menos dele. Odiei o tio, odiei a necessidade de trabalhar tão cedo. Ele só tinha 11 anos!
       Ainda o encontrei uma vez na Rua Batista de Carvalho. Meu coração parecia explodir. E, quando vi uma feia cicatriz em seu pescoço,  ideias péssimas me habitaram a mente. O tio exigente lhe vergastara o corpo com uma chibatada: e disparara: "ou trabalha ou morre! " Isso com um rictus cruel nos lábios. Ai! Minha imaginação não me deixou dormir, ainda mais que vi, em minha alucinação copperfieldiana uma cicatriz cortando de cima abaixo o rosto do algoz.
       Outros alunos marcaram minha vida aí no Morais. Foi maravilhoso. Utilizei com eles o livro de Criatividade de Samir Curi Meserani e foi sucesso absoluto enquanto estive nessa maravilhosa casa de ensino.
       O que me dava muita alegria era saber que nenhum pai ou mãe reclamava do material que eu exigia. Era escola de periferia, mas nunca vieram se queixar do dinheiro que gastavam com dois livros didáticos e quatro de leitura extraclasse. Esses são pais que entendem o valor do estudo. E outro motivo de satisfação era que os pais liam os romances de leitura  extraclasse. Eram obras não necessariamente de autores brasileiros. Havia A Cabana do Pai Tomás, Robinson Cruzoe, Éramos Seis, Aventuras de Tom Sawyer, O Escaravelho do Diabo, Meu Pé de Laranja Lima. Enfim: livros que estimulavam a leitura, pelas emoções. Nós, pais de alunos e eu, vivíamos em lua de mel. 
       Houve uma classe que acompanhei desde a 5a série até a 8a. Na quinta, eram pequeninos, lindos, curiosos e temerosos. Nunca sabiam a reação dos professores às brincadeiras. Num determinado dia, entrei na 5a série e coloquei minhas coisas na mesa. Livros, canetas, dicionários. A carteira do aluno da fila central ficava bem grudada quase à mesa. Ficou hipnotizado por algo meu.
       -- Dona Sônia, onde a senhora comprou essas canetas? ( eram três: azul, preta e vermelha. Eram canetas Pilot, de escrita fina, novidade na época) 
       Achei difícil dar o endereço do supermercado onde adquirira esses objetos. Ficava nos altos da cidade e o Morais se situava na Vila Bela Vista.
       Dei qualquer resposta e prometi dar o endereço em outro dia. Eu nem poderia imaginar aquele toquinho de gente saindo da Bela Vista para se aventurar nos longes dos altos da cidade. Pensei: passarei lá e comprarei para ele.
       Os dias se passavam e, na correria das aulas, não encontrava tempo para ir comprar as canetinhas. Mas isso só me prejudicava, porque meu aluno não perdoava: "Onde a senhora comprou as canetas?"
      Finalmente, houve uma pausa nos afazeres e pude ir até ao supermercado dos altos da cidade. Comprei as canetas, embrulhadas para presente e, no dia seguinte, entreguei-as ao interessado. Ele nem acreditava. Diga-se de passagem que ele merecia, porque seu caderno era limpinho e super organizado, com letra cuidada, pequena e com correção. Os subtítulos em vermelho, uma graça. (Esse último dado, letra pequena, não interfere na caligrafia. É só pra mostrar pra vocês que eu me lembro perfeitamente do caderno e da letra dele. Fazendo um esforcinho, lembrarei o nome: sei que é derivado de roberto ou alberto. Mas não era Felisberto. Nem Adalberto. Começava por A.
         Muitas décadas depois, encontrei-o e ele se lembrava das canetas. 
         Naquela época fiz uma grande parceria com o Jair Lott Vieira, o dono da Jalovi. No final de semestres, ele doava ótimos livros com que eu premiava os alunos.
       E o que dizer da Diretora da escola? Se alguém merece ser chamada de educadora é ela: Maria dos Anjos Cintra.Diretora modelo, escola modelo. Um orgulho!
        O diretor Francisco a substituiu nos últimos dois anos em que aí fiquei. 
       Assim se passaram sete anos. Até o ano em que me casei.
       O Morais Pacheco alargou minha vida. De repente, estava não com oito irmãos, mas com dezoito. Uma fraternidade jamais vista numa escola. Nós não só nos amávamos, nós nos rejubilávamos com as conquistas de nossos "irmãos".
       Lílian era nossa enciclopédia portátil. Sabe das coisas não por ouvir dizer, mas com conhecimento científico. Uma professora de Ciências e de Biologia, antes dentista, mas com o dom de atrair os alunos para sua disciplina. Era um tal de os alunos chegarem, com caixinhas na mão, e dentro delas algum inseto horripilante, mas conduzido com todo o amor. E bichos. E plantas. E recortes de jornais. Tudo era interesse, tudo era amor ao estudo.
     Nílvia, com sua voz agradável e quente, levava os alunos ao conhecimento do mundo, de suas riquezas e de suas perdas.
     Minerva dava à História uma conotação humana, objetiva e verídica, sem os arroubos que desvirtuaram, décadas mais tarde, o estudo dessa disciplina.
     Evelyn, ah! Como sabia ser minha irmã. Nós nos entendíamos desde o tempo em que trabalháramos juntas em Pirajuí. Sinto tanto o tempo ter-nos afastado. mas ela continua sempre a ser uma de minhas melhores lembranças.  Evelyn, professora de Educação Física. Organizava apresentações incríveis com as alunas. Mil vezes Evelyn! Dilma nunca teve ninguém como ela, para a abertura de  uma copa.
    Marilene, minha colega de área, com quem planejava os rumos de nosso ensino de Português. Voz pausada, tom sempre educado, era uma paixão entre os alunos. Sua influência se fazia sentir de um modo tão sutil! As suas alunas logo queriam escrever com letra mais cuidada, mais bonita, mais limpinha, porque a professora escrevia no quadro com letra limpinha, bonita e cuidada.
     Marta Barbosa, professora de Português. Que voz cheia de energia, de personalidade! Foi com prazer e muito honrada que escrevi seu elogio ao concurso de Professor do Ano. A história dela saiu igual à protagonista: interessante, cheia de vida e de amor ao magistério. Claro, com tantos predicados, só poderia ser premiada. 
     Professor Arlindo, irmão das professoras, adorável colega e instigador da inteligência dos alunos. Sua tese era que os alunos não sabiam Matemática porque não entendiam Português. Ao que eu rebatia: eles não sabem explicar porque não entenderam a Matemática. Essa nossa discussão eterna. Hahahá! Éramos muito amigos. Também me senti honrada por fazer seu elogio para concorrer ao título de Professor do Ano. O Professor Arlindo não foi premiado, mas recebemos notícias de que só não o fora porque, no ano anterior, já abiscoitáramos o prêmio. com a Marta Barbosa, querida e inigualável professora de Português. Também me contaram que uma das examinadoras dos processos dissera que os nossos elogios - o da Marta e o do Prof. Arlindo -  eram quase romances, pois  revelavam a beleza das pessoas descritas, no seu mister e no seu dia a dia, com seus interesses e suas paixões. 
      Cariene, a musical, conseguiu levar a Banda da Polícia Militar ao colégio. Que aula foi aquela! E que aulas ministrava nossa maestrina!
    Renê, colega que guardava debaixo do sorriso fácil, uma história familiar de perdas irreparáveis. Sempre amiga, educada, laboriosa. E o principal: sempre em paz consigo mesma e conosco. 
   Benê, professor de Desenho. Ah, sempre falava que todos poderíamos desenhar! Infelizmente nunca consegui. Ah, Benê, queria ter sido sua aluna!
    Jussanã, nosso colega e, mais tarde, diretor. Um homem simples, dedicado à sua profissão.Queria inventar, para quando desse o sinal depois do intervalo, uma  cadeira que desse choque nos professores, que continuassem sentados, mesmo ouvindo a chamada para as aulas. Ríamos e aí, diante da ameaça, íamos para as salas.
    Havia outros colegas também. Maravilhosos. Mas esses que descrevi eram nossa família. De verdade. 
   Numa festa junina, Renê e eu não nos acanhávamos de ir com bobs nos cabelos. À noite, haveria o encontro com o namorado, e precisávamos estar lindas. Naquela época nem íamos muito a salões de beleza.

      No meu casamento, quinta-feira, ao meio dia, acredito que não houve aulas no Morais Pacheco. O corpo docente estava todo na festa, incluindo o diretor da escola, Francisco de Assis. Estão aí na foto: Sr Arlindo, Prof. Gutenberg,  Mariko, Rosa, Maria do Carmo, Evelyn,  Sei que Lílian, Nílvia , Marilene, Minerva também estavam aí. 
Minha família pachequeana.
 


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